Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Detalhes de um mal-estar democrático

Há um tipo de patologia mental em que o sofrimento do indivíduo se torna mais nítido através do mal-estar demonstrado por outros. O chamado borderline, ou ‘fronteiriço’, é assim. Seu entorno afetivo – parentes, amigos etc. – passa por uma inquietação contínua frente a uma personalidade-mosaico, com sintomas que não se consegue muito bem definir. Mas há igualmente situações sociais que não se definem claramente em termos jurídicos ou psicossociais, e só quando amplificadas pela mídia fazem-se notar pelo mal-estar provocado no espaço público.

Este segundo caso parece convir à repercussão jornalística da proibição da biografia do cantor-compositor Roberto Carlos. Certamente temerosa das conseqüências de uma ação judicial prolongada, a editora fez um acordo com os advogados do cantor e vetou a circulação do livro. Este, segundo todos que o leram, não contém difamação alguma ou calúnia contra o cantor. Pelo contrário, é obra de louvação, escrita por um admirador confesso que, no fundo, apenas ordena narrativamente uma pletora de informações já publicadas sobre o artista, cuja imagem, sob o epíteto de ‘rei’, tem décadas de ampla divulgação no território nacional. Mas o ‘rei’, que aparentemente pretende o monopólio do discurso público sobre si mesmo, levou a editora à censura.

O episódio ainda se estendia na imprensa no momento em que se realizou, na Câmara dos Deputados, a 2ª Conferência Legislativa sobre Liberdade de Imprensa. A principal conclusão do encontro é a de que hoje o principal desafio para a democracia – diante da evidência de que a liberdade de imprensa ainda sofre ameaças no Brasil – é ‘o exercício diário dessa liberdade, com a definição ou não de limites para a livre circulação de informações, uma espécie de `sintonia fina´ do direito à livre comunicação’ (O Globo, 9/5/2007).

Mesmo admitindo a existência eventual de exageros e injustiças, os participantes da Conferência foram unânimes na rejeição de leis destinadas a regular a liberdade de imprensa. ‘Não é com leis, mas com a prática, a abertura e o diálogo’, sustentou o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Nelson Sirotsky.

Liberalismo publicista

O que têm a ver as preocupações da Unesco, promotora do evento junto com a ANJ – partilhada por jornalistas brasileiros e estrangeiros, donos de jornais e parlamentares –, com o episódio da biografia do cantor?

Para começar, referem-se ao mesmo objeto: o cerceamento da liberdade de expressão. Daí, a condenação da atitude do cantor por parte de jornalistas, colunistas e intelectuais de um modo geral. Todos sabem, em maior ou menor extensão de conhecimento, que a proposta ética (a moral deontológica, dos deveres) do jornalismo é pelejar pela visibilidade das decisões de Estado ou pelo estabelecimento da verdade sobre questões essenciais para a coletividade, pela livre manifestação de pensamento etc. São tradicionalmente ideais do que hoje se designaria como ‘publicismo’, um dos pilares da modernidade democrática.

O problema é que, na medida em que a imprensa agiganta o seu poder como ator social e se torna ‘mídia’ (uma forma de vida articulada com mercado e tecnologias da informação) num contexto de esvaziamento do liberalismo clássico, vai-se ampliando tecnologicamente o espaço público tradicional, mas se tornando caduca a velha exigência ética de livre manifestação da subjetividade civil. Isto já é perfeitamente visível nos Estados Unidos, um dos principais solos fundadores do liberalismo publicista tradicional, centro exportador de modernizações jornalísticas e o mais bem realizado modelo de organização capitalista da mídia.

Frivolidade e parques temáticos

Um livro do norte-americano Eric Alterman (What Liberal Media? The truth about bias and the news. N.Y, Basic Books, 2003) desmente primeiramente o mito do ‘liberalismo’ como referência para a imprensa de seu país, caracterizando-a como ‘mais conservadora do que liberal’. Isto é bastante evidente no caso da televisão, mas vale igualmente para os jornalistas da imprensa escrita, que ‘têm editores acima deles, que têm diretores acima deles, os quais, em muitos casos, têm corporações acima deles’. Quanto aos jornalistas de televisão…

‘…têm produtores e produtores executivos e executivos das redes, preocupados, antes de mais nada, com as porcentagens de audiência, lucros de publicidade e sensibilidade dos ouvintes, seus anunciantes e corporações proprietárias. Quando se trata de conteúdo, é esse pessoal que importa, mais, talvez, do que qualquer outro’.

A mídia torna-se, assim, intelectual coletivo da liberdade exclusiva de mercado: não mais agente universal do Esclarecimento burguês, e sim do global, financeiro e mercantil. Dispositivo de dominação sensorial e simbólica, ela não oculta o seu compromisso histórico com o espírito objetivo dessa ordem, explicitando as suas estratégias de identificar, marcar e fixar em seus lugares os sujeitos do consumo, cada vez mais dispersos e fragmentários em suas identidades.

O entretenimento e os serviços de consumo ganham o primeiro plano das atenções, de maneira que, seja nos Estados Unidos ou em outros países, dá-se o fenômeno da propagação de uma forma de notícia ‘que se relaciona mais com frivolidade e parques temáticos do que a idéia vetusta de público e vida cívica’. A mídia não é mais ventríloqua da comunidade nacional, mas intérprete de si mesma enquanto boca orgânica do mercado.

Tolerância democrática

O livro sobre Roberto Carlos não constitui um exemplo singular do universal Esclarecimento burguês, pelo qual se bateriam os defensores clássicos da liberdade de imprensa. Tem a ver com entretenimento midiático, com a rubrica ‘costumes’ (a vida privada de um ídolo da canção), e não exatamente com a ‘vetusta vida cívica’. Entretanto, o cerceamento à circulação de um livro, a menos que se tipifiquem calúnia e difamação (o que não é o caso), identifica-se no imaginário democrático – que existe e tem força positiva – com episódios historicamente marcados como atentados à liberdade de expressão. Ainda mais, quando são públicos os fatos relatados ou quando o biografado haure sua fama do contato positivo com o público.

Daí, o anacronismo ou o retrocesso da atitude cerceadora. A sua principal conseqüência não é certamente a mesma de um grave atentado à liberdade de expressão de uma verdade essencial à vida pública. Nada de dramatizações… Mas é, sem dúvida alguma, a emergência de um mal-estar público, ‘fronteiriço’, que lança uma sombra indelével sobre a imagem que o ‘rei’, o cantor, tanto deseja proteger.

Tanto mais quanto vem à memória coletiva a figura de um monarca de verdade, o ‘nosso’ D. Pedro II, que demonstrava a mais democrática das tolerâncias para com as liberdades que jornalistas e caricaturistas tomavam com sua imagem. É possível que a mídia ou a indústria cultural do terceiro milênio tenha algo a aprender com a esfera pública do século 19.

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Jornalista, escritor, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro