A viagem para a edição de um vídeo sobre os direitos da mulher, com ênfase em sua participação nas organizações e na sociedade, foi uma experiência para além dos objetivos que buscávamos alcançar no início desse empreendimento. Foram oito dias na estrada, entrevistando mulheres que são exemplos de participação, em 11 municípios da Região Sul, a fim de começar a preencher as demandas no nosso roteiro de filmagem.
Essa viagem foi marcante porque acabou por se constituir em verdadeira expedição ao fundo da alma dessas ‘companheiras’. Ela deixou uma marca em toda a equipe de profissionais que participaram dessa etapa do trabalho e a certeza de que há um campo maior e mais complexo para ser trabalhado nos projetos de gênero e geração das organizações da agricultura familiar, que pode, ainda, contribuir para aprofundar as discussões sobre a participação da mulher em outras organizações e instâncias sociais.
A primeira constatação já estava presente nas entrelinhas do roteiro de filmagem: mostrar que a participação da mulher agricultora começa lá no seio da família e na produção familiar, se estende para a comunidade, o sindicato, as organizações locais, os empreendimentos familiares e coletivos (agroindústrias, associações e cooperativas de produção e de crédito) e alcança espaços mais amplos, como a atuação na elaboração de políticas públicas, a participação nos conselhos gestores dessas políticas, nas administrações públicas, no Poder Legislativo e assim por diante, não necessariamente nessa ordem.
O que nos surpreendeu não foi o conhecimento dessa mulher que participa ativamente em diversos espaços organizativos, dessa mulher ‘porta afora’ de casa, ou seja, da face forte e, por vezes, até extrovertida que ela expõe na sua atuação social diária. Fomos surpreendidos pelas verdadeiras ‘histórias’ por trás desse caminho trilhado, pelos sentimentos mais escondidos e pelas emoções guardadas a sete chaves no fundo da alma. Essas histórias de vida só estavam, até então, registradas na memória e no coração de cada mulher, de cada ‘companheira’.
Reforço à violência
Um detalhe era tão óbvio nisso tudo que, de certa forma, passou batido. Não esperávamos que ao ‘filmar’ os depoimentos das mulheres, estivéssemos trabalhando profundamente com um elemento essencial desse processo: as imagens… As imagens que elas fazem de si próprias, as imagens que os outros fazem delas e sua auto-estima.
Quando as luzes se acendiam, a câmera ficava no ponto, o microfone funcionava direitinho e o cinegrafista gritava ‘Gravando!’, esse conjunto de ações ganhava um significado mais amplo. Em outras palavras, era como se disséssemos: ‘Toda a atenção está concentrada em você, mulher!’, ‘somos todos olhos e ouvidos atentos’, ‘você é a estrela’, ‘você é importante e tem algo a dizer’, ‘fala, que estamos te ouvindo’. Ao se preocupar em ordenar todos os componentes técnicos da coisa não percebíamos o poder dessa ‘atenção’. O ‘Gravando!’ conseguia puxar lá de dentro das mulheres os sentimentos mais escondidos, as memórias mais guardadas.
Para muitas ‘companheiras’, esse conjunto de procedimentos trazia à tona suas histórias de vida, as lembranças de sofrimentos, preconceitos, injustiças passadas ao longo de muito tempo, especialmente ao longo da superação do grande desafio de garantir um espaço de participação ativa na família, nos assuntos da propriedade, na comunidade, no município e nas organizações da sociedade.
A equipe se surpreendeu com casos extremos de companheiras que, diante do desafio de serem filmadas ao responder a algumas perguntas, expuseram todas as feridas que carregavam, choraram todo esse passado de agressividade e de luta, se emocionaram e até mesmo se bloquearam, exibindo as cicatrizes registradas na sua auto-estima: ‘Eu não posso!’, ‘eu não sei!’, ‘eu não consigo!’. Em nenhum momento ouvimos um grito de ‘eu não quero’, seguido do disparo de ‘uma metralhadora cheia de mágoas’ contra o nosso trabalho, muito pelo contrário. O mais dramático foi sentir, nessa explosão de insegurança, um reforço à violência que elas sofreram no passado, como uma espécie de autopunição, pois as lágrimas, o silêncio e os bloqueios se traduziam em ‘eu não mereço!’.
Espelhos sociais
Também fomos surpreendidos por mulheres que se expressaram diante da câmera com a maior naturalidade, transmitiram segurança e até uma certa afinidade com aquele aparato técnico. Algumas, por já terem participado de atividades de formação com recursos da comunicação social (microfones, filmadoras), por estarem há muito tempo assumindo a transmissão de mensagens pela organização de que elas participam, seja por meio de programas de rádio, manifestações públicas ou entrevistas, por terem encarado de frente a disputa com os ‘companheiros’ na direção das organizações e mesmo por não supervalorizarem estas ferramentas. Nesse último caso, agricultoras, sem cargo de liderança ou de direção nas entidades locais, falaram tudo e mais um pouco ao ignorarem a câmera e apenas responderem às perguntas das pessoas que as estavam entrevistando.
Com todas essas emoções trazidas à tona, essa experiência foi emocionante e rica em constatações. Ela mostra abertamente que há uma lacuna a ser preenchida por projetos de políticas de gênero nas organizações da agricultura familiar, que dêem conta de trabalhar também o individual, a auto-estima, as histórias de vida e o ser humano mulher. Evidencia que as ferramentas da comunicação social podem potencializar a formação de lideranças, resgatar a auto-estima e fazer parte do dia-a-dia das mulheres agricultoras, assim como os demais recursos de que elas se utilizam para construir seu destino e sua história de participação.
Também concluímos que um dos reflexos da ainda baixa a participação das mulheres na direção das organizações da agricultura familiar é a pouca familiaridade que as agricultoras, lideranças, têm com os recursos da comunicação social, pois a ‘voz’ dessas entidades é predominantemente masculina.
Na maior parte das vezes, foi o homem, dirigente, quem se capacitou para dominar as técnicas da comunicação e, por isso, é ele quem predominantemente também concede entrevistas, quem fala nos programas de rádio, quem assume o microfone nas manifestações públicas, quem senta às mesas de negociação representando a agricultura familiar e quem abocanha os espaços de participação na sociedade e no poder público. Não é diferente do que se vê nos noticiários de TV porque não é diferente do reflexo que se enxerga a partir dos espelhos sociais. E isso não ocorre pela falta de mulheres capazes de se desafiarem a entrar numa competição saudável com os homens.
Avaliem sua prática
Muitos desses ‘companheiros’, representativos de sua classe, podem até tentar se defender com as seguintes argumentações: ‘Elas se acomodaram’, ‘elas é que não querem participar’, ‘elas não assumem’, ‘as oportunidades são as mesmas’. Enquanto isso, muitas mulheres continuam vestindo suas ‘capas de invisibilidade’ funcionais, desempenhando papéis secundários e executando tarefas menores, de apoio.
Mesmo essa postura por parte delas precisa ser resultado de uma avaliação livre, do autoconhecimento e de uma decisão consciente: ‘Eu não quero fazer isso’, ‘eu não gosto de fazer esse tipo de coisa’, ‘eu quero assumir determinada função e não esta’. Mas não porque, em algum momento de suas vidas, alguém ou alguma situação, usando de violência ou de autoritarismo, lhes incutiu nas entranhas os conceitos do silêncio, do medo, da passividade, da desvalorização da mulher e da anulação da pessoa.
Quando nossa jornada começou, não buscávamos fazer um documentário com discurso feminista radical. Fomos fazer, sim, um vídeo sobre as relações de gênero na agricultura familiar, o que significa mulheres, homens, jovens e adultos partilhando vidas, trabalhos e sentimentos, mas com enfoque nos direitos e na valorização da participação da mulher agricultora. Só que o desequilíbrio nessa relação ainda é tamanho – e na agricultura familiar ele já é bem menor do que era há alguns anos – que choca e pede que o apelo por mudanças, fazendo o contrapeso nessa balança social, não fique calado.
As ferramentas da comunicação social têm uma função importante a desempenhar na construção de relações igualitárias de gênero. Os meios de comunicação de massa também. Comunicação é visibilidade, é expressão. Por isso, comunicadoras e comunicadores sociais precisam avaliar constantemente sua prática, a fim de que os ‘fatos’ noticiados ou divulgados sejam realmente ‘assexuados’ e não ajudem a aprofundar as desigualdades já existentes em nossa sociedade.
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Jornalista, Curitiba