Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Digno de se dizer livre

Em dezembro de 1995, cerca de 40 dias depois de publicado, meu livro Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha foi proibido de circular por decisão judicial, devido a um processo movido pelas herdeiras do jogador. Passou os 11 meses seguintes proibido. Graças a um recurso da Companhia das Letras, voltou a circular em novembro de 1996, mas o processo se arrastou por mais dez longos anos, com enormes despesas para a editora.


Em 2007, Paulo Cesar de Araújo também teve seu livro Roberto Carlos em Detalhes, pela Planeta, proibido de circular, por processo movido pelo cantor. Desta vez nem houve tempo para recursos: os exemplares remanescentes foram recolhidos (na verdade, entregues pela editora, em troca da retirada dos processos) e, parece, incinerados. Ou seja, a proibição de circular chegou ao extermínio físico.


É preciso rever esse artigo do Código Civil


E, desde 2009, a agressão à liberdade de expressão deu um passo ainda mais assustador: um livro já não corre apenas o risco de, depois de impresso, ser processado, recolhido e exterminado. Ele pode nem ser impresso. É o perigo com que se defronta o jornalista Edmundo Leite, que tem a sua biografia de Raul Seixas (na qual trabalha há cinco anos e para a qual já fez centenas de entrevistas) passível de nunca ser aceita por uma editora devido às ameaças preventivas feitas por uma das viúvas do cantor.


Notar que, a partir da Constituição de 1988, o Brasil deixou de ter censura. Mas um artigo do Código Civil, tentando defender o direito de imagem das pessoas comuns, permitiu uma brecha pela qual penetraram os inimigos da verdade e da informação. Do jeito que ficou, uma tetraneta de Getúlio Vargas, por exemplo, pode pedir a proibição de um livro que afirme que seu tetravô se matou.


É preciso rever esse artigo do Código Civil para que o Brasil seja digno de se dizer um país livre.

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Jornalista e escritor, colunista da Folha de de S.Paulo