Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Dilema de um jornalista bem-humorado

Domingo, 24 de julho, à noite, aeroporto de Congonhas. O vôo 1660, da Gol, marcado para as 22h30, está atrasado. Nenhum aviso é dado. Os passageiros estão no portão 8.

Nova passageira chega e antecipa o aviso que depois reboará naquela voz indolente dos alto-falantes. O embarque não será mais naquele portão, o que já se tornou norma nos aeroportos: indica-se um portão para o embarque, que depois é transferido.

Os passageiros cumprem o ritual cansativo, mas têm outra surpresa: devem ir de ônibus ao aeroporto de Guarulhos. Há poucas reclamações e pedidos de esclarecimentos, como saber se o pouso será no Galeão ou no Santos Dumont.

Já dentro do avião, em Guarulhos, quase duas horas depois, aeromoças e aeromoços recebem os passageiros dando bom-dia, pois o vôo, marcado para domingo, decolará segunda-feira. Mas não imediatamente. O avião não decola, o comissariado sente que os passageiros estão inquietos e querem saber o motivo de mais demora. O comandante fala, enfim, explicando que aguarda as malas e mais quatro passageiros retardatários. Explica que as razões do atraso em Congonhas foram o intenso tráfego aéreo e a interdição da pista para o avião da presidência da República.

Vieram, então, as reclamações, em aumentados decibéis. Logo depois passava um abaixo-assinado sem que estivesse escrito o que estava sendo reclamado. Uns, ao assinarem, falavam ‘mensalão’, como se fosse uma senha. Outros, mais comedidos, falavam em desrespeito, overbook etc. Espantoso que alguém assine, escreva o nome, dê o número da identidade e telefone de contato num documento em que não consta o que é reivindicado. Quem primeiro teve a idéia do abaixo-assinado deve ter posto o nome e falado ao vizinho. Este, sonolento, assinou e passou adiante, sem explicações.

Por conta própria

O vôo, que chegaria ao Rio pouco depois das 23h de domingo, chegou à 1h40 de segunda-feira. Santos Dumont estava deserto. Começava novo sofrimento, principalmente para adultos com crianças de colo. Parentes, amigos ou taxistas contratados precisavam voltar para levar os passageiros ao destino final.

E todos sabem que nenhuma cidade é a mesma cidade depois da meia-noite, mas que o Rio de Janeiro ganha de todos nos perigos dessa vida: para quem ia para a Barra da Tijuca, havia o perigo adicional dos túneis. E se aqueles poderes sombrios, que já mandam mais na cidade do que as autoridades constituídas, resolvessem interditar o caminho, confiscando bens, carros e a vida dos passageiros?

A presença dessas hordas sinistras, que já tomaram largas fatias do poder constituído, é evidente e muito mais assustadora quando avança a noite. Já decidiram, por exemplo, até que horas os clientes dos bancos podem sacar do dinheiro que têm depositado nas instituições-chave do chamado sistema que nos governa. De uma determinada hora em diante, apenas cem reais. E depois, nada. O dinheiro de todo mundo é retido para averiguações, certamente, e só pode ser utilizado muitas horas depois, quando provavelmente o cliente já teve que adotar outra solução por contra própria, abandonado pelo banco do qual é cliente.

Imitando Delúbios e Silvios

O rigor dos bancos afeta o cliente chamado comum, o cliente-padrão, aquele do qual vive todo o sistema bancário. Suspeito sempre, ele deve passar por uma humilhante porta que detectará suas armas. Quais? Aqueles que sacaram malas e malas de dinheiro para a corrupção, que chegaram à agência até de carro-forte para buscar a propina a ser distribuída – pasmem – entre representantes do povo, não foram submetidos a tal rigor! Pois se até um morto sacou grandes quantias, como está comprovando a CPI. E os horários foram especialíssimos!

Já o cidadão que, por problemas pelos quais não pode ser responsabilizado, está impedido de sacar o dinheiro do táxi, está perdido no meio da selva escura, trafegando caminhos que poderão levá-lo a um Inferno ainda pior do que de Dante.

O nome desse novo Inferno é anomia, palavra que veio do grego para designar a ausência de normas. Na organização da sociedade, dá-se anomia quando a disparidade da aplicação das normas é tamanha que deflagra divergências e conflitos que chegam a impedir que os cidadãos as respeitem igualmente.

Se uns semelham múltiplos agentes007, que têm licença para matar, por que razão todo o corpo social haverá de respeitar o documento-mor, a Constituição, se até autoridades encarregadas de aplicá-la já fazem terríveis concessões a criminosos confessos?

Imaginemos que nas próximas declarações do Imposto de Renda o contribuinte imite Delúbio Soares, Silvio Pereira e tantos outros cidadãos flagrados com a boca na botija do erário público, pois é ali o berço do dinheiro das malas, e às perguntas da Receita Federal respondam ‘eu me reservo o direito de não responder’!

Culpas no cartório

A ameaça de anomia lembra a frase famosa do jornalista Sérgio Porto, então utilizando o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta: ‘Ou restaure-se a moralidade ou nos locupletemos todos’.

Como, para o bem ou para o mal, o regime presidencialista concebe e trata o presidente como super-homem, é o presidente Lula quem deve deflagrar, pois já tarda, o processo de restauração. E se não o fizer, alguém o fará por ele.

O nome desse alguém estremece todos os brasileiros, mas principalmente aqueles que nele votaram, muitos dos quais já corroídos de remorsos sondáveis e insondáveis, explícitos e implícitos, vagos ou difusos, mas de todo modo remorsos. Aqueles que não votaram poderiam esperar tudo do governo Lula e chegaram a profetizar que o despreparo e a incompetência cedo ou tarde dariam seus frutos, mas certamente nunca pensaram que a corrupção, em proporções trágicas e devastadoras, fosse a principal marca de seu governo e paralisasse o Brasil que, atônito, parece em colapso aguardando não se sabe bem o quê!

Com tantos áulicos corruptos e incompetentes cercando o presidente Lula, está mais do que na hora de ele deixar de dar ouvidos àquela gente que parecia tão séria e prestar atenção ao conselho de um dos melhores humoristas brasileiros, não por acaso um jornalista: Stanislaw Ponte Preta, pseudônimo de Sérgio Porto, que trabalhava quinze horas por dia.

O que fazia? Escrevia! Por que escrevia tão bem? Lapidou o talento que Deus lhe deu com boas leituras. O próprio pseudônimo nasceu da leitura de Memórias de Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. Sua frase final, ao partir desta vida antes que sobre desabasse o AI-5, foi proferida no dia 29 de setembro de 1968: ‘Tunica, eu tô apagando’.

Tomara que o presidente Lula, cujo possível destino trágico o então ministro Aldo Rebelo associou a Getúlio Vargas, não esteja apagando em nenhum sentido, real ou metafórico. A primeira providência é não deixar apagar o cérebro.

Foi fora de propósito o presidente culpar as elites por descalabros perpetrados por seus companheiros de partido! As elites têm outras culpas no cartório, ele que procure ali a seu redor que achará quem lhe pode esclarecer rapidamente a questão, a começar pelo ainda ministro da Educação Tarso Genro. Ele sabe que o presidente está enganado em tal diagnóstico.

[Versão reduzida deste artigo foi publicada no Jornal do Brasil em 26/7/2005]