Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Direito processual penal para jornalistas

Uma das categorias profissionais mais presunçosas é a dos jornalistas, a qual
só encontra similar nos profissionais do Direito. [Sobre os estudantes de
Direito escreveu José Simão: ‘E a moda agora é estudante de Direito matar
parente! Uma mata os pais e o outro agora mata a avó. Já sei, Elias Maluco pediu
ajuda pros universitários! E eles estavam estudando pra defender ou pra atacar?
Outro dia uma filha foi apresentar o namorado pro pai e o pai perguntou: `O que
você faz?´. `Sou estudante.´ `De quê? Direito?´ `Não, artes plásticas.´ `UFA!
Posso dormir sossegado…´’ (‘Vou torrar meu 13º em amendoim!’, ‘Mais!’,
Folha de S.Paulo, 1/12/2002, pág.23)]


Ambas as classes costumam opinar sobre tudo, quando seus conhecimentos
técnicos são praticamente nenhum sobre o assunto ao qual dedicam suas
bisbilhotices. Essas opiniões vão da plantação de hortaliças à física nuclear. O
mais impressionante, contudo, é que conseguem ser superadas pela classe dos
economistas, esses que, excluindo Karl Marx, único explicador da origem dos
problemas sociais e propositor de soluções para resolvê-los, falam uma linguagem
que ninguém entende (o famoso economês, o idioma próprio), propõe soluções cujos
resultados são sempre contrários aos previstos, pensam que são deuses, querendo
que os fatos se ajustem aos seus vaticínios e não estes àqueles.


[Um dos expoentes da economia brasileira afirmou: ‘Talvez seja mais saudável
um médico administrador, com poucas e certas idéias para restabelecer a
credibilidade interna e externa na economia, do que um brilhante economista com
muitas e contraditórias sugestões que costumam levar a imobilização ou à
aventura.’ (‘Delfim chancela o médico Palocci’, Veja, nº 1.780, de
4/12/2002, coluna ‘Radar’, pág. 32).]


Mesmo sendo assim, não posso concordar com Nataniel Jebão [pseudônimo de
Fausto Wolff, ‘Jebrownies’, O Pasquim 21, nº 39, de 12/11/2002, pág. 24]
quando afirma: ‘Mailson da Nóbrega não só está em liberdade como palpita sobre
inflação’, afinal, ele, juntamente com o ex-presidente Sarney, melhor que
ninguém conhecem sobre inflação, pois índice 80% ao mês, para a dupla, era
fichinha.


Na minha santa ignorância, que certamente é um sacrilégio do ponto de vista
dos economistas, e demonstra meu desconhecimento, respondo: prefiro o país com
inflação e empregado.


Parafraseando Drummond, podemos dizer, em relação aos juristas, mas que
também serve as outras duas classes acima citadas, o seguinte:




‘Ó, juristas!/ que ódio vos tenho, e se fosse apenas ódio…/ É ainda o
sentimento/da vida que perdi sendo um dos vossos.’


Na verdade, profissões como a do jurista e do jornalista realmente exigem um
conhecimento, por mínimo que seja, de todos os ramos do saber humano.
Profissionais dessas áreas, não devem saber tudo, mas de tudo devem saber um
pouco, a fim de que possam desempenhar melhor seus misteres. Pensando nisso,
estamos apresentando este trabalho a fim de subsidiar o labor dos jornalistas
quando tratarem com o Direito em suas reportagens, já que deles cada vez mais é
exigido conhecimentos relacionados com o mundo jurídico. Mundo esse que é
complexo por natureza, deixando perdidos em suas filigranas os mais experientes
e perspicazes dos juristas. Tanto assim que o direito é dividido em vários ramos
(penal, civil, comercial, tributário, previdenciário, aeronáutico, marítimo,
trabalho, constitucional, etc.), onde cada profissional se especializa em um
desses ramos, e onde, mesmo especializado, comete os escorregões comuns à toda a
atividade humana.


A dificuldade do mundo do Direito começa com a própria definição do que venha
a ser o Direito, como nos explica André Franco Montoro [Montoro, André Franco,
Introdução à Ciência do Direito, São Paulo-SP, Editora RT, 21ª edição,
pp. 29/34] na seguinte passagem:




Pluralidade de significações do direito – Cinco realidades
fundamentais


Não podemos nos limitar ao estudo do vocábulo. Devemos passar do plano das
palavras para o das realidades.


Consideremos as expressões seguintes:


1 – o direito não permite o duelo;


2 – o Estado tem o direito de legislar;


3 – a educação é direito da criança;


4 – cabe ao direito estudar a criminalidade;


5 – o direito constitui um setor da vida social.


Se atentarmos para a significação do vocábulo ‘direito’, nessas diversas
expressões, verificaremos que, em cada uma, ele significa coisa diferente.


Assim, no primeiro caso – ‘o direito não permite o duelo’ – ‘direito’
significa a norma, a lei, a regra social obrigatória.


Na segunda expressão – ‘o Estado tem o direito de legislar’ – ‘direito’
significa a faculdade, o poder, a prerrogativa, que o Estado tem de criar
leis.


Na terceira expressão – ‘a educação é direito da criança’ – ‘direito’
significa o que é devido por justiça.


Na quarta expressão – ‘cabe ao direito estudar a criminalidade’ – ‘direito’
significa ciência, ou, mais exatamente a ciência do direito.


Na última expressão – ‘o direito constitui um setor da vida social’ –
‘direito’ é considerado como fenômeno da vida coletiva. Ao lado dos fatos
econômicos, artísticos, culturais, esportivos, etc., também o direito é um fato
social.


Temos, assim, cinco realidades diferentes a que correspondem as acepções
fundamentais do direito. Um estudo mais detido nos revela que, partindo destas,
podemos chegar, ainda, a outras significações, de menor
importância.


A crônica de Zuenir Ventura, brilhante escritor e jornalista, abaixo
transcrita, bem demonstra a visão que os jornalistas têm do Poder Judiciário,
principal operador do Direito. Ouçamo-lo:




Testemunha de palavrão


Confesso que nesses longos anos de vida, poucas vezes vivi uma situação tão
ridiculamente constrangedora como a da semana passada, na 14ª Vara Cível de São
Paulo. Tudo por causa de uma expressão que todo mundo conhece e que é a mais
ouvida em estádios de futebol. Para a história não perder a graça, é preciso
contá-la sem meias palavras.


Portanto, os ouvidos mais delicados e pudicos que me perdoem a falta de
cerimônia. Tenho que ser literalmente fiel aos fatos. Juro dizer a verdade aqui,
como jurei dizer lá, numa sala do oitavo andar do Fórum, onde fui parar como
testemunha de defesa no processo que uma senhora move contra o humorista Ziraldo
por ele tê-la chamado numa entrevista de ‘filha da puta’.


Meu testemunho poderia ajudar a esclarecer uma questão crucial: ‘filha da
puta’ é uma expressão injuriosa capaz de provocar danos morais que justifiquem
uma reparação de R$ 50 mil, como quer a acusação, ou é apenas um xingamento, um
desabafo, sem juízo de valor, como alega a defesa? Em suma: chamar alguém de
‘filho da puta’ é um mero xingamento, uma espécie de interjeição, ou se trata de
uma declaração substantiva de fato, uma injúria?


Já na primeira pergunta, percebi que ali não podia haver subentendido; as
coisas tinham que ser claras. Admito que não estava à vontade. O cenário da
Justiça, solene e litúrgico, sempre amedronta: o juiz lá em cima, altivo,
distante, soberano; os advogados, cumprindo o seu papel, tentam evidentemente
pegá-lo pelo pé, querem que você dê uma escorregada, que caia em contradição,
que seja traído pela memória. A tensão é inevitável.


Assim, meio nervoso, dei minha primeira resposta, com o pudor e a cautela de
quem está chegando a um ambiente de cerimônia onde havia inclusive senhoras. A
não ser que você seja um cafajeste, ninguém chega a um lugar desses dizendo ‘Oi,
onde está o filho da puta?’


Por isso, ao responder a pergunta inicial do Juiz, fugi da expressão chula e
recorri a um eufemismo: preferi referir-me ao ‘episódio do palavrão’, como um
senhor deve fazer numa sala onde há pessoas que ele não conhece. O máximo que
você se permite nessas circunstâncias é um ‘f…da…p’. Num interrogatório na
Justiça, porém, você tem que ser preciso, não pode usar subentendidos e
ambigüidades.


‘O Sr. está se referindo ao filha da puta?’, me corrigiu o juiz. Levei um
susto. Nunca ouvira de egrégia boca tal chulice. Refeito, tive vontade de dizer
‘Ah, é? Liberou geral? Se é assim, deixa comigo!’. Já estava a ponto de soltar
um ‘puta que pariu, Meritíssimo, que saco essa coisa toda!’, quando olhei o juiz
e vi que ele tinha um rosto ao mesmo tempo jovem, sereno e severo. Não inspirava
nenhuma gracinha. Era daquelas pessoas que não precisam amarrar a cara para se
fazerem respeitar. Sabe aqueles sujeitos que, por mais intimidade que se tenha,
jamais se ousará dar-lhe um tapinha na barriga? Pois é. Me contive então e
respondi com o maior respeito: ‘Exatamente, Meritíssimo, me refiro ao filha da
puta’.


Isso foi, como disse, no começo da audiência. Com o passar do tempo, no
entanto, o próprio juiz teve que se esforçar para não rir, nem sempre
conseguindo deixar de esboçar leves sorrisos. A situação era por si só
engraçada. Num judiciário com tantas dificuldades, tantos problemas para
resolver, como levar a sério aquilo tudo?


A comédia ficou impagável quando se procurou mostrar os vários usos do tal
palavrão, inclusive como elogio. Lembrou-se que Ziraldo, na mesma entrevista à
revista Imprensa, empregara parte da expressão para falar de um ex-presidente:
‘Itamar é puta velha; é um craque’. Temi que começassem a entrar no recinto
outros palavrões não autorizados. Era um tal de puta pra lá, puta prá cá na sala
que eu fui me descontraindo e de repente já estava dando também meus exemplos.
‘Quando eu digo que fulano tem um puta texto, Meritíssimo, isso é um elogio. Um
puta cara, uma puta mulher’.


Por pouco, vejam vocês, não repetia para o juiz aquele exemplo machista bem
grosseiro: ‘quando digo aquele filho da puta tá comendo fulana, Meritíssimo,
isso é um elogio’. Felizmente, o que me restava de pudor aquele dia me impediu
de cometer a cafajestada.


Eu saíra de casa às 8h30, pegara o avião das 10h e estava voltando no vôo das
6 da tarde, quando me lembrei do bordão do Ancelmo e me disse: como deve ser bom
viver num país em que a Justiça tem tão pouco a fazer que é capaz de passar um
dia discutindo a expressão filho da puta. Ainda no espírito da 14ª Vara Cível,
tive vontade de plagiar também Jânio Quadros dizendo para Fernando Sabino: ‘Puta
que pariu, Fernando, que língua a nossa!’ [Capturada no site
Consultor
Jurídico
, que, por sua vez, informa que o texto foi
publicado no site Notícia e Opinião, hoje NoMínimo]


Por tudo isso, e por ser este uma obra destinada a breves consultas, não
esperem os seus leitores conceitos técnico-jurídicos aprofundados, mas simples
noções que melhor os auxiliarão na arte de informar, e, consequentemente, educar
as pessoas.




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Procurador da República