O ilustrado procurador Marco Aurélio Dutra Aydos honra-me ao aceder ao meu convite, formulado ao fim de meu artigo ‘Reflexões sobre as distintas valorações da violência’ [ver remissão abaixo]: ‘Estarei aqui fechando o debate, incidindo em autoritarismo? Pelo contrário. Até espero contestação. Mas contestação que não me aponha rótulos dos quais não sou merecedor – ‘esquerdista’, ‘comunista’, ‘partidário’, ‘defensor de bandido’ –, menos pela adjetivação em si mesma e mais pela necessidade de que não se vicie a compreensão das minhas premissas’.
Com efeito, neste equívoco não incide ao me contestar. Entretanto, é curioso como, pelo simples fato de eu manifestar uma discordância com as suas premissas, o autor vem me acusar de incorrer ‘no pouco que se refere à violência interna, nesse discurso dogmático criticado por Alberto Dines. O discurso dogmático, típico do radicalismo em permanente estado de ‘defesa’ contra a dúvida de suas premissas é a forma argumentativa do discurso político de amigo/inimigo, e obscurece a possibilidade de que alguém pode ser autêntico e subjetivamente honrado defensor de uma idéia e objetivamente estar errado na forma de defendê-la, e pode até mesmo contradizer o ideal perseguido. É apenas a associação de uma idéia errada a uma obrigatória ‘má-consciência’ do emissor dessa idéia que torna a conclusão de Antônio Augusto Araújo, referida por Ricardo Camargo, a respeito de ‘Falsos defensores de direitos humanos’ (Observatório da Imprensa, 9/12/2003) parcialmente correta: os que sucumbem à poderosa ideologia do ‘politicamente correto’ tornam-se de fato ‘incapazes de sequer tentar outra apreensão da realidade que os cerca’.’
Ao contrário. Em nenhum momento considero manifestação de má consciência o pensamento que me seja oposto e tampouco pus em dúvida a honra subjetiva de quem quer que seja, até porque a argumentação ad personam não serve para contestar qualquer proposição: apenas exerço um direito de expor meu pensamento acerca da matéria. Pode ser que eu esteja – e para o ilustrado integrante do Ministério Público Federal, é indiscutível, fora de quaisquer dúvidas, que estou – errado. Mas ainda não me convenci do meu erro, a não ser que este seja ter percepção diversa da adotada pelo erudito articulista. Quanto à postura defensiva, creio que num país em que certos estereótipos são suficientes para transformar qualquer discussão num diálogo de surdos, ela passa a se justificar por si mesma. O próprio texto a que respondo incide, se me permitir o seu autor, em equívoco que o último período do parágrafo acima. Com efeito, eis como lê uma passagem do meu texto anterior:
Premissa problemática tomada como verdade, pergunta falsa e modo autoritário de formular a defesa de direitos humanos são três defeitos sintetizados no único parágrafo em que Ricardo Antônio Lucas Camargo refere-se à violência interna e ao sistema criminal brasileiro, ao dizer que
A Lei dos Crimes Hediondos há mais de uma década vem sendo aplicada com todo seu rigorismo. Terá servido para diminuir a criminalidade? Especialmente aquele a que ela mesma se refere? Os periódicos e a mídia eletrônica informam exatamente o contrário, embora majoritariamente bradem contra a brandura das nossas leis. Agora, se fosse feita uma enquête, com toda a certeza, veríamos que a maior parte dos brasileiros a aprovaria, como aprovaria a pena de morte. Justamente porque a concepção mais primitiva – sem qualquer conotação pejorativa, mas utilizando o sentido primordial, original – da pena é a de uma vingança social contra o infrator. Não seria uma postura demagógica ‘em prol dos direitos humanos’ que encontraria eco no Brasil, mas precisamente a pregação demagógica contrária: ‘contra os direitos humanos’, porque identificados com ‘direitos dos bandidos
(…) A defesa dos direitos humanos é mais legítima quando defende também a democracia, porque são os regimes políticos antidemocráticos os tradicionais inimigos dos direitos humanos. A democracia não admite o discurso autoritário de ‘tutela da razão do povo’ que não sabe votar. Traduzindo bem, o discurso dos juristas humanitários, representado no pensamento de Ricardo Camargo, diz exatamente isso: o povo não sabe votar. Se for permitido que esse povo discuta e decida questões sérias como o fundamento da pena criminal e a pena de morte, esse povo vai recair na barbárie primitiva. Por isso será melhor que não deixemos esse povo discutir ou votar esses assuntos. É o supra-sumo do autoritarismo que, à esquerda ou à direita, prefere a ‘democracia-dirigida’ ao risco de consultar a vox populi. Segundo se infere desse pensamento, lamentavelmente mais representativo do consenso dos juristas do que devia, a lei dos crimes hediondos é bárbara e fascistóide, e só existe na sociedade brasileira por culpa de ‘demagogos’ que denigrem os direitos humanos como ‘privilégios de bandidos’. Se o deixarmos à solta esse povo vai querer também a pena de morte. É hora de parar de ouvir esse povo fascistóide, que questiona, mediante o critério do senso comum, as premissas de nossa ‘ciência criminal’ superior e seus dogmas. A conclusão é excessivamente aristocrática, na melhor das hipóteses. O remédio possível contra excesso de dogmatismo é manter-se aberto para o saudável senso comum, que pode não saber bem onde e nem por que, mas percebe algo essencialmente errado em nosso discurso jurídico.
Não fiz ali nenhum juízo de valor acerca de ser boa ou ruim a Lei 8.072, de 1990. Aliás, não é do meu feitio criticar o legislador, salvo a hipótese de inconstitucionalidade. Diga-se de passagem que o pensamento do autor a que ora respondo, renovando o de Jean-Jacques Rousseau, ao tratar a lei como expressão da vontade geral, arreda, inclusive, a possibilidade do controle de constitucionalidade, porquanto um poder ‘aristocrático’, porque investido mediante rito diverso daquele prescrito para os parlamentares e para o Executivo, pode tornar sem efeito o produto da infalível vontade geral, se for levado às últimas conseqüências.
Coletividade, individualidade
E penso que não é exatamente este o pensamento do ilustrado representante do Ministério Público Federal. O que eu disse foi outra coisa: foi que a lei em questão, independentemente de suas virtudes intrínsecas, não atingiu a sua finalidade. E é perfeitamente fácil comprovar tal assertiva pela simples consulta ao sítio do Supremo Tribunal Federal, que – falo com a experiência de quem atuou durante anos perante os Tribunais Superiores – não é exatamente o Tribunal mais generoso na concessão de habeas-corpus. Mesmo havendo julgadores de primeiro e segundo graus que arredam a proibição de progressão de regime, as mais das vezes, a questão chega aos Tribunais Superiores para reformar tais decisões. E, por outro lado, a existência da lei, em abstrato, não basta para que as soluções para os problemas a que ela se dirige se implementem. Até porque, como disse o Professor Eros Roberto Grau, não basta a existência da lei, porque esta somente será o que o intérprete autêntico – aquele que tem o poder de dizer o seu sentido em caráter de definitividade – disser que ela é (Revista Trimestral de Direito Civil, v. 5, p. 35). Não é a dureza da pena, maior ou menor, que vai impedir a prática do crime, mas sim a efetividade de sua concretização.
De outra parte, é interessante verificar que o próprio autor a que respondo, no que tange à receptividade da população à pena de morte, não contesta o dado central de minha assertiva, isto é, que ela seria acatada pela população, realmente assustada pela violência, e certa de que nunca será atingida por uma violência do próprio Estado. Com efeito, eis o que assere:
Entrevistas realizadas em São Paulo, na década de 90, informam que a maioria da população agora afirma ser ‘contra os direitos humanos’, embora seja favorável aos direitos sociais. Vai-se cristalizando a idéia de que criminosos foram excluídos da sociedade e não têm direitos, para chegar-se à idéia generalizada no discurso autoritário de que foram excluídos também da espécie humana e por isso não têm direitos humanos. Esse discurso naturalmente foi fomentado por defensores do antigo regime militar, para chegar ainda um pouco mais longe e encontrar a ‘causa’ do incremento da violência que passamos a enfrentar: não apenas os ‘defensores de bandidos’ são culpados agora pela violência, mas a própria democracia, numa também difundida imaginação social de que com direitos constitucionais a polícia ficou de ‘mãos amarradas’ (basicamente falsa, mas eficiente como desculpa pela falência do sistema de segurança).
O meu pensamento, em termos mais claros, pode ser traduzido da seguinte forma: ‘Mesmo que eu seja, pessoalmente, adversário da pena de morte, é indubitável que o povo seria receptivo a ela’. Mas seria autoritário da minha parte, por conta disto, ser contrário à pena de morte? Abstração feita do fato de o procurador Marco Aurélio Dutra Aydos também não considerar a pena capital como solução – que não utilizarei como argumento, porque não serve para sustentar a tese contrária à proposição segundo a qual divergindo da solução que fosse adotada em qualquer forma de consulta estaria eu incidindo em autoritarismo – recordo, apenas, que o fato de estar inserido numa coletividade não é suficiente para fazer com que um ser humano perca a sua individualidade.
Caso de polícia, questão social
O próprio Kelsen, diga-se de passagem, em seu O contrato e o tratado na Teoria Pura do Direito, referiu a existência sempre de um determinado núcleo que remanesceria sempre intocado por comandos externos, mesmo que se tratasse de um Estado totalitário, que pretendesse se adonar inclusive da alma de seus súditos. Assim, pretender obrigar o meu pensamento a ser o da multidão – que não é nem melhor nem pior do que eu – é, simplesmente, negar-me, enquanto ser humano, a individualidade. Mas somente em regimes totalitários – pouco importa se ‘de direita’ ou ‘de esquerda’ – o indivíduo é visto como algo que deva, necessariamente, diluir-se em meio à massa de súditos, qual – usando uma imagem cara a Niezsche – rebanho humano.
E, por outro lado, penso que a distinção kantiana entre autonomia e heteronomia ainda tem a sua validade. Neste sentido, explicando com um exemplo: não tenho qualquer simpatia pelas reformas que têm sido levadas a cabo no Texto da Constituição de 1988, mas não posso deixar de as ter como obrigatórias, até que o poder competente para tanto as julgue inválidas. Elas se impõem a mim independentemente de eu gostar ou não. E, ainda, o texto a que ora respondo parece passar ao largo do fato de que no primeiro, no segundo e no terceiro parágrafos do meu breve comentário cheguei a dizer o que se segue: ‘Quem já teve a vivência da caserna conhece uma expressão bastante para fundamentar a aplicação de punições ao subordinado. O superior a este pergunta o porquê de ter adotado tal ou qual atitude e, em seguida, aplasta-o dizendo: ‘Explica, mas não justifica!’
Assim penso no que tange às questões que estão sendo levantadas pelo douto procurador da República Marco Aurélio Dutra Aydos, autor da instigante reflexão intitulada ‘Desaviso ou sinal de alerta?’, publicada no Observatório da Imprensa de 3 de fevereiro de 2004 – que, modo certo, parece reproduzir a linha de raciocínio do procurador do estado da Bahia Antonio Augusto Araújo, publicada no Observatório da Imprensa de 9 de dezembro de 2003 sob o título ‘Falsos defensores de direitos humanos’.
Como disse, ‘não defendo – e jamais defenderei – que um pobre tenha o direito de matar um rico. Adverso que sou, figadalmente, à pena de morte, principalmente tomando em consideração a possibilidade de se repetirem casos como o dos Irmãos Naves e, por outro lado, considerando a advertência de Kelsen quanto a não serem ontologicamente diferentes a execução da pena capital (que, mesmo na Idade Moderna, podia assumir contornos horrendos, como se pode verificar com a execução do assassino de Guilherme de Nassau, o Taciturno, ou com o suplício da roda, referido tanto por Théophile Gautier em O capitão Fracasso quanto por Friedrich Schiller em Os bandoleiros) e um homicídio, estando a distinção a cargo exclusivamente do ordenamento jurídico, jamais poderei defender que alguém mate a outrem, exceto nas situações-limite postas na legislação penal. ‘Não defendo – e jamais defenderei – que o fato de alguém ser um excluído social lhe dê o direito de agir à margem da lei. Até porque se é verdade que a questão social não é um caso de polícia – como disse não um marxista, um comuna, mas ninguém menos do que Getúlio Vargas – também é verdade que nem todo caso de polícia se resolve pela questão social. Mas também não posso negar – e isto não é insensibilidade diante da dor alheia, deixo isto muito claro – que é mais fácil verificar a existência da explicação para a atitude hostil de quem já é hostilizado do que para a atitude de quem não é hostilizado’.
Explicar e justificar
Das passagens destacadas, extrai-se o seguinte: em primeiro lugar, explicação não é sinônimo de justificação. Se eu identifico, eventualmente, uma determinada relação de causa e efeito entre dois fatos, não estou, necessariamente, a fazer um juízo que legitime a conseqüência. Especialmente quando o fato se apresente como uma resposta comportamental a um determinado estímulo. Trazendo um exemplo para tornar mais leve o debate – nem só por ser sério o assunto deve ser tratado de modo que enfade: nem todo marido traído necessariamente mata a mulher. O exemplo é até ‘politicamente incorreto’, mas é corriqueiro. Afinal, tenho idade suficiente para ter acompanhado o julgamento de Doca Street, no qual brilhou a defesa do saudoso Evandro Lins e Silva.
Em segundo lugar, não tratei a pobreza como um passaporte para a onipotência, nem justifiquei que a posição de ‘oprimido’ autorizasse a morte de um ‘inimigo de classe’. Ao contrário, procurei deixar clara a minha posição no sentido de que a identificação de eventual duplicidade de pesos e medidas jamais poderá ser confundida, necessariamente, com a justificação da violência que se pratique.
Em terceiro lugar, procurei estabelecer o pressuposto de que a consideração de uma conduta como crime ou como a aplicação de uma sanção penal decorre exclusivamente do que dispuser o ordenamento jurídico. Pressuposto próprio do positivismo jurídico, mais especificamente da linha normativista, para deixar explícito que não considero possível inferir da ‘natureza das coisas’ a reprovabilidade de qualquer conduta. E é evidente que, no particular, Kelsen se opõe a Hegel.
Em quarto lugar, trouxe à baiha o conceito de ‘situação-limite’ a que se refere a legislação penal, ao excluir a antijuridicidade nos casos de legítima defesa ou estado de necessidade.
Em quinto lugar, procuro afastar a acusação – que, entretanto, não consegui evitar – de reduzir a causa da criminalidade à questão social. Se o excluído social não está, por esta condição, autorizado a agir à margem da lei, não será a questão social invocada como um bill of indemnity.
Em sexto lugar, eu disse que se explica – não que se justifica! – com muito maior facilidade a atitude hostil de quem se sente – e, muitas vezes, é – hostilizado do que a atitude hostil de quem não é hostilizado. Embora este dado integre a experiência comum, fiz questão de o explicitar, para o fim de que as bases do meu raciocínio se tornassem mais claras.
Sujeito às ilusões
Como o texto que ora respondo pretende imputar-me a pecha de ‘radical’, parece importante comentar a seguinte passagem:
O primeiro passo, e o mais difícil sempre, é afastar do caminho soluções falsas e de ‘papel’, combater a demagogia e o autoritarismo, mas também reclamar que sejamos ouvidos com seriedade, não admitindo o discurso moralista que nos acusa de hipocrisia. Nenhuma sociedade civilizada pode durar se às famílias das vítimas é conferido o ônus de pedir justiça, dever que ‘constitui’ o Estado. Agora, uma vez que chegamos a esse ponto, ainda é mais absurdo ter que ouvir o desaforo de quem diz que pedir justiça pela morte de ‘x’ seja hipocrisia porque não se pediu pela morte de ‘y’. Ainda que seja verdade que a mídia empreste mais destaque às famílias socialmente visíveis (por poder, influência, status, ou o que valha), é possível que essa diferença seja moralmente irrelevante. Por ‘arbitrário’ que seja seu interesse no sofrimento social, quando a mídia dá lugar à tradução desse sofrimento como um clamor por justiça, o que deve chamar nossa atenção não é a arbitrariedade da escolha dos que jamais quiseram ser notícia (página policial não é coluna social), mas se o clamor por justiça que se levantou é justo ou injusto. Se for justo, será melhor imaginar que a discussão da injustiça real de todo o sistema penal é uma fala representativa. A mídia, em tempos de normalidade democrática, em que não há proibição aberta (embora haja censura velada, como no curto-circuito que revela-e-esconde as circunstâncias de apuração de responsabilidades sobre a morte de Celso Daniel), não é tanto um espaço de exclusão, ou pelo menos é o reflexo menos perverso da exclusão social, porque segue padrões de consumo em que as nossas mortes interessam se forem vendáveis, jogando à vala comum a rotina e o trivial. A morte de ‘um dos nossos’ é notícia sempre, porque somos proprietários dessa sociedade, mas não é por isso que a morte brutal de meninos de rua, quando da chacina da Candelária, não tenha direito a seu espaço. A hipocrisia denunciada pelo público como interesse por vítimas influentes e desinteresse por vítimas anônimas não é hipocrisia de fato. Hipocrisia é um conceito moralista. Em sua formulação clássica, de La Rouchefoucauld, é o ‘tributo que o vício paga à virtude’. Como tal ela é fingimento, e o clamor por justiça pela morte de um dos nossos não é vício e nem paga tributo a uma virtude: é um clamor humano diante da injustiça, que é o próprio vício do sistema penal. Em momento algum nega que se faça justiça a todas as vítimas, até porque depois que os nossos já foram vítimas do horror à segunda potência, que é o crime sem castigo, o pleito por justiça não é mais egoísta (o que seria seu déficit de virtude). (…) Melhor será deixar o discurso moralista, no qual retratos da hipocrisia ficam mais à vontade, de lado, quando discutirmos problemas de justiça. A reclamação de que a justiça opera com ‘dois pesos e duas medidas’ não é um retrato de hipocrisia, mas de injustiça, que pode ser prestada por auto-engano e equivocada virtude. O problema moral é mais complexo no que não admite essa associação obrigatória do erro à má-consciência de quem erra (também se peca por ignorância, conforme uma longa tradição). Os que reproduzimos a injustiça da exclusão imaginamos sempre, à direita ou à esquerda, que fazemos apenas cumprir o ideal da mais bela justiça.
Mesmo que o texto, aqui, não me refira nominalmente, nem cite qualquer passagem do meu artigo, dado o enfoque, a premissa central adotada – o de que eu, autoritariamente, pretenderia impor meus alienados dogmas acerca da tutela dos direitos humanos – torna-se lícito que eu entenda que se pretendeu atingir aquilo que o autor considera ser meu pensamento. Se assim não for, tenho a meu favor pelo menos a possibilidade da alegação da legítima defesa putativa – tornando um pouco mais leve um debate que se vai tornando árido.
Acredito que pretenda o texto se referir a esta passagem do meu artigo:
Enquanto a criminalidade violenta é vista com horror a denominada ‘criminalidade dourada’ é vista até mesmo com simpatia pela esperteza dos seus protagonistas, principalmente em casos de sonegação e de crimes contra a economia popular. Cabe trazer, também, o depoimento de Miguel Reale Júnior sobre os denominados crimes de colarinho branco: ‘Essa criminalidade sofisticada, lastreada no poder econômico e político, gera até mesmo a sensação de impotência. (…) Ressalta-se também o perigo dessa criminalidade que não alcança repúdio público, vista até mesmo com notória benevolência, malgrado atinja bens jurídicos supra-individuais ou coletivos’ (‘Crime organizado e crime econômico’, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, nº 13, p. 188, jan/mar 1996).
Não falei, evidentemente, em ‘hipocrisia’, mas sim na percepção média que se tem, disseminada, do que se considere como crime. Uma postura desta natureza pode decorrer de preconceitos, da própria complexidade dos fatos que constituam objeto da repressão penal, enfim, ‘n’ fatores. E um criminalista experiente, insuspeito de simpatias esquerdistas, como o professor Reale Júnior, é que traz o seu depoimento acerca da percepção existente acerca da criminalidade dourada e da criminalidade violenta. E, curiosamente, o procurador Marco Aurélio Dutra Aydos acaba me acompanhando, pois chega a completar o meu pensamento na seguinte passagem:
A violência da corrupção, da sonegação fiscal, do peculato, ofende algo que parece abstrato mas é fermento de civilização, que é a confiança no pacto de sociedade. Ela é socialmente perigosa porque desestimula a esperança dos excluídos de que vale a pena investir na luta política pela ‘redistribuição’ política de bens e direitos, fomentando a desesperada ação direta e a ação criminal. A injustiça flagrante é fermento da criminalidade.
Assim como não é pecado discordar de mim, não é caminho para a perdição eterna comigo concordar. Pode ser que eu esteja errado. Errado, inclusive, no modo de interpretar o pensamento do procurador Marco Aurélio. Mas um possível erro deste quero prevenir: não tome como um ataque pessoal a minha respeitosa divergência, até porque quem não teve a unção divina – e dentre estes humildemente me incluo – é, modo certo, escravo de suas percepções e, por isto mesmo, sujeito a todas as ilusões.
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Advogado em Porto Alegre, doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais