A repercussão dada à fala da ministra Matilde Ribeiro na entrevista à BBC é desproporcional ao seu conteúdo. Mas não deixa de ser emblemático que uma ministra se refira a uma questão tão sensível em termos de uma linguagem comum e, como já é sabido, não sustenta na verdade qualquer naturalidade – seja no racismo, seja no preconceito. E ainda mais, não se traduz pelo governo ou qualquer grupo dedicado à defesa das cotas raciais e das ações afirmativas em práticas ou propostas de ‘racismo às avessas’.
O máximo a ser atribuído à fala da ministra é uma ‘naturalidade’, como ela pretendeu dizer, de uma possibilidade de alguém ressentido com o racismo vivenciá-lo como um revide. O que não significa defender, promover e muito menos, como se pretende, induzir seja um projeto para o Brasil ou que as cotas raciais e as ações afirmativas iriam provocar.
Mas esta interpretação é marota quando uma mídia poderosa ‘cola’ uma frase da ministra aos seus argumentos contra as cotas: ‘Querem dividir o país racialmente!’
Mas o que significa esta associação entre tal mídia poderosa, alguns acadêmicos e um grupo suspeito que se assuma negro e socialista?
‘Modelo’ para o negro
Por que os setores trabalhadores, empresariais, partidos políticos e demais associações civis não se manifestam (pelo menos sistematicamente) contras as cotas raciais e as ações afirmativas? Trata-se de um silêncio omisso ou de aceitação? Trata-se de um desconhecimento ou de uma aceitação tácita para a redução das desigualdades por raça e cor (sem entrarmos na questão das cotas para mulheres e minorias) comprovada por órgãos de governo e universidades?
Pelo peso atual das opiniões dos intelectuais na mídia sobre as grandes questões nacionais, o ataque sistemático às cotas não se daria sem o apoio intenso desta parcela de pseudo-ativistas e alguns defensores e teóricos da democracia racial à brasileira.
O que surpreende, no caso das cotas, confirma-se através da veiculação sistemática da opinião dos mesmos difamadores, facilmente encontráveis nas páginas de O Globo e de artigos do seu diretor de jornalismo da Rede Globo. Entre os muitos interesses inconfessáveis existentes, se destaca uma possível disputa acadêmica ou mesmo a pura vaidade, além da falta de grandeza intelectual e política. Somente tais pressupostos podem justificar a prática destes setores em conluio conservador. Ou não são eles que se beneficiam, aí, sim, da representação ‘natural’ do negro-projeto como seu objeto de estudo e de desejo?
E agora, sentindo-se ameaçados em seu controle sobre este saber e sobre seus investimentos de desejo sobre o ‘seu modelo’ para a existência do negro, estruturado à custa do mito da democracia racial, do alto de suas posições e projetos não podem admitir sua desconstrução.
O mito desfeito
Como já denunciara o sociólogo Guerreiro Ramos na década de 1950, aprisionam o negro como uma categoria e um objeto de estudo, não admitindo sua própria identidade e sua produção de saber fora das categorias e modos de vida que julgam dominar. A identidade negra e sua produção de saber devem estar sempre ao alcance de sua compreensão e controle, não admitindo qualquer categoria ou proposta que esteja fora de seus ‘projetos universalizantes’ de conhecimento e poder.
Não se trata aqui de uma contestação ao fato de terem ou manifestarem qualquer opinião contrária, já que devem estar no exercício de seu direito democrático de fazê-lo. A questão é o ataque sistemático e a apropriação da fala da ministra como um argumento de ataque às cotas raciais e às ações afirmativas.
O apagão é um termo recente e apropriado para o efeito que esta aliança pretende provocar na consciência da opinião pública sobre as cotas raciais e as ações afirmativas. À falta de argumentos consistentes aos seus prognósticos de que as cotas raciais poderiam provocar o racismo, têm que se valer de interpretações forçadas e relações inexistentes entre uma fala com termos comuns e uma proposta política que comprovadamente promove uma inclusão social. A bem da verdade, reduzindo seus privilégios e de seus apaniguados e ameaçando suas posições construídas à custa do mito desfeito e do qual tentam desesperadamente juntar os pedaços.
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Sociólogo, Nova Friburgo, RJ