Li, neste Observatório, o artigo ‘Imprecisão e licença científica, o retorno‘, dos professores e cientistas Rubens Pazza e Karine Frehner Kavalco – um texto interessante, atual e questionador.
Ao participar do I Seminário da Pesquisa em Comunicação da Região Sudoeste (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB, em Vitória da Conquista, BA), fiz uma reflexão sobre o discurso científico e a divulgação científica, incluindo o papel do jornalista como inter-mediador de discursos e, por isso mesmo, divulgador científico. Entende-se que os dois discursos estão em esferas diferentes e apresentam caracteres próprios a serem estudados profundamente. Para tanto, segui os passos teórico e prático do filólogo russo Mikhail Bakhtin e da pesquisadora Lilian Zamboni.
O primeiro aponta para necessidade de olharmos o discurso como espaço de interação social que se subdivide em gêneros, tipologias, universos que se inter-relacionam de maneira dinâmica e conflitante (incluindo assunto abordado, sujeito, público, composição léxica do discurso). E Zamboni esclarece, inteligente, sobre os discursos, científico e de divulgação científica.
Vive-se num tempo em que a ciência tem precedência e valor de verdade, um poder quase onipotente. Na atual conjuntura, ela determina ações e hábitos, justificando processo e dinâmicas humanas e os cientistas têm muito a dizer sobre seus estudos. Segundo Lilian Zamboni [Cientistas, Jornalistas e a Divulgação Científica: subjetividade e heterogeneidade no discurso da divulgação científica. Campinas: Fapesp/Editora Autores Associados, 2001], os cientistas constroem e vivem, comunicam-se no exercício de suas atividades sob um gênero de discurso, o científico.
Instrumento eficaz
Essa tipologia discursiva possui características próprias, dinâmicas e termos específicos acessíveis à comunidade científica (discurso do biólogo, discurso do físico, discurso do sociólogo, por exemplo). Eles se comunicam num processo discursivo sisudo, por jargões elaborados segundo regras rígidas e após exaustivos testes, exames, observações e práticas laboratoriais constantes. Ao se comunicarem fora do cotidiano para seus pares, eles, em geral, constroem um discurso bem calçado, com conceitos previamente discutidos e em consenso. Tudo para assim serem aceitos ou rejeitados, de acordo com a tendência ideológica da comunidade em que estão inseridos. Criam-se novos conceitos, rejeitam-se outros, reelaborando-se constantemente no interior desse gênero discursivo.
O discurso científico pertence à comunidade científica e para adentrá-la é preciso as provas de título, envolver-se e entrelaçar-se em suas dinâmica, em outras palavras, tornar-se cientista. Como salienta o filósofo Michel Foucault [FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: edições Loyola, 2003.], eles compõem um grupo privilegiado, instituído de qualificação para tal procedimento: criar um enunciado verbal e competente no assunto.
A fala científica se restringe nessa área e só entra quem for qualificado. Entretanto, eles não compõem um gênero de discurso fechado incomunicável, mas dialogam com outros discursos que se interconectam com os cientistas. Daí, a necessidade de haver uma divulgação científica, o instrumento eficaz dos cientistas para serem ouvidos fora de seus laboratórios, havendo assim progresso da ciência, subsídios financeiros e justificação ideológica das práticas de pesquisa.
Entre o céu e o inferno
Diferente desse gênero discursivo científico, o discurso de divulgação científica em seus diversos níveis (desde cientistas falando a outros cientistas em áreas distintas, cientistas falando para leigos, e leigos falando de ciência para outros leigos) assume-se num universo distinto; nele não se apresentam as falhas, as práticas cotidianas, mas apenas os resultados das pesquisas. Ele é uma nova reestruturação sofisticada para o público heterogêneo da sociedade, onde se diluem jargões, desaparecem conceitos, resumem-se resultados. Tal gênero apresenta e transforma o discurso científico em conteúdo divulgador, isto é, clareia as hipóteses e teorias da pesquisa científica para o público, aproximando-se lexicamente e simplificando, visando ao entendimento da população.
A descoberta de um novo medicamento, os avanços da genética, as novas aplicações do eletromagnetismo tornam-se parte do discurso social através da divulgação científica. Falar sobre ciência é, antes de tudo, colocá-la a serviço da sociedade, juntamente com sua aplicação prática, abrangendo temas que alcançam o cotidiano.
O discurso de divulgação é um discurso midiático, torna-se mediação entre os enunciados científicos e o público, mantendo um caráter universal e seus enunciados acessíveis a uma miríade de sujeitos discursivos. Ideologicamente, atua sobre a sociedade, a mente e os hábitos e cultura, escolhas econômicas e opções políticas.
Em resumo, a divulgação científica possui uma função legitimadora e explicadora do discurso científico, reformulando a ciência divulgada. Para tanto, o desafio é grande para o inter-mediador, que fica entre o céu e o inferno, ou seja, na terra, tramitando entre a divulgação e a divagação científica.
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Jornalista, escritor e pós-graduando em Meio Ambiente e Desenvolvimento no Centro de Ensino, Pesquisa e Extensão Socioambiental (Cepesa), na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), em Itapetinga-BA