Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Do État-gendarme ao Estado-pastor

O jornalismo do dia-a-dia debruça-se normalmente sobre a superfície dos acontecimentos, sobre a imediatez do fato, deixando a cronistas, editorialistas e articulistas a tarefa de perscrutar os aspectos mais escondidos da notícia. Não escapou, entretanto, aos autores dos diferentes gêneros, o caráter socialmente simbólico da mediação de um pastor evangélico na rebelião dos presos de Benfica, no Rio de Janeiro, que culminou em 31 mortes.

Os repórteres foram unânimes em enfatizar a presença do pastor. Idem para os cronistas, embora com posições ligeiramente variadas. Luiz Garcia (O Globo, 4/5/04), por exemplo, ressaltando que ‘o motim vai obviamente para a conta do governo estadual’, deixou claro que ‘o único suposto herói no episódio foi um pastor evangélico que trabalha com detentos e tem relações pelo menos afetivas com o Comando Vermelho. Teve ser chamado – reforçando um prestígio não necessariamente salutar – porque as autoridades ainda não descobriram que precisam ter funcionários especialmente treinados para negociar nesse tipo de situação’.

Na verdade, as autoridades dispõem de dois negociadores treinados, segundo informou o noticiário, mas que foram substituídos, por ordens superiores, pelo evangélico. É precisamente isto que contribui para caracterizar como socialmente simbólico todo o episódio: o Estado deixou-se desbordar pelo religioso. Assim é que, na mesma edição do Globo, mesma página, o editorialista Luiz Paulo Horta, citando em artigo o Atlas da filiação religiosa no Brasil (Edições Loyola), chamava a atenção para o fato de que, mesmo que o Brasil continue a ser o maior país católico do mundo, a supremacia católica vem sofrendo fissuras desde 1980: ‘Com o censo de 2000, os católicos perdem 9,4 pontos, enquanto os evangélicos crescem 6,6. O número de pessoas que se declaram pentecostais (evangélicas) sobe de 3,9 milhões em 1980 para 8,8 milhões em 1991 e 18 milhões em 2000 (mais do que dobra a cada década)’. Em tudo isto, a mídia tem a sua parte: ‘A [Igreja] Universal [do Reino de Deus] cresce muito, usando eficazmente a mídia: passou de 269 mil em 1991 para 2,1 milhões em 2000′.

Mediação ou intermediação?

Já havíamos assinalado em livro que, no centro do formidável crescimento do pentecostalismo, impõe-se a nova ordem do poder da imagem. Mas não é apenas isto:

‘Em primeiro lugar, a forte emotividade individual e comunitária, que faz dos rituais das novas seitas ou denominações religiosas (inclusive a ala carismática da Igreja Católica) espetáculos comparáveis aos da indústria midiática do entretenimento; segundo, a importância da moeda no relacionamento intersubjetivo; terceiro, a transformação imaginária de cada indivíduo num herói folhetinesco em luta contra um grande vilão, intitulado Satanás; quarto, e como conseqüência lógica do terceiro, a obrigação individual de incorporar a retórica (ou o marketing) da evangelização; quinto, a transvaloração da vida cotidiana, em que simulacros de soluções para problemas práticos substituem a remota escatologia da salvação; sexto, a estimulação de formas de vida comunitária, reais ou imaginárias, num universo de populações progressivamente excluídas das benesses das rendas pela economia global do mercado. E assim por diante’ (Antropológica do espelho, Editora Vozes, 2002).

Tudo isto já é mais ou menos sabido, se não de modo tão sistemático, pelo menos de maneira intuitiva, já incorporada à sensibilidade comum – o que nos levou a ouvir, ainda outro dia, de uma criança de 12 anos, um comentário notável sobre a alegada não importância do rito do batismo para uma dessas denominações pentecostais: ‘Não é preciso batizar, basta começar a pagar’.

A frase não tinha nenhuma intenção depreciativa, visava no contexto apenas a constatar uma realidade, aliás, próxima a um trecho do citado artigo de Luiz Paulo Horta:

‘Um pastor evangélico se forma rapidamente e tem à sua disposição o que não deixa de ser um bom emprego: as seitas novas arrecadam com um desembaraço com que nem sonham os católicos – para os quais essa história de dízimos ainda é bicho-de-sete-cabeças’.

Só não era muito sabido isto que precisamente se revelou no episódio da rebelião de presos em Benfica: o desbordamento do Estado, isto é, o ultrapasse da capacidade oficial de gerir um conflito social por um representante de uma seita religiosa, convocado às pressas, ao que se sabe, tanto pelos rebeldes quanto pelas próprias autoridades estaduais. De repente, não se sabe mais, conforme hipótese aventada pela imprensa, se era mesmo mediação ou ‘intermediação’, ou seja, se o pastor não teria sido mero mensageiro de uma ordem do Comando Vermelho para que acabasse o motim.

Conjuntura obscura

O que se vê de fortemente simbólico nisso tudo é o índice da falência de um dos aspectos mais notórios do Estado liberal clássico: o de efetivo controlador da violência, o de État-gendarme. Violento ele próprio, bloco histórico de espúrias alianças eleitorais, corrupto em seu âmago, arrecadador impiedoso de impostos, indiferente à sorte da cidadania, confirma-se cada vez mais como État-voyou, Estado bandido.

Esta realidade é mais visível em alguns lugares do que noutros. No Rio de Janeiro, consegue-se ver o pior por efeito de uma conjuntura governamental regressiva e obscura. Basta dizer que a governadora do Estado admite publicamente não acreditar na evolução das espécies.

E ao observador da imprensa não resta senão lhe dar alguma razão, levando em conta a possibilidade que pode estar faltando a Sua Excelência contato com a comprovação empírica da lei de Darwin.