Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Do mapa afetivo ao jornalismo de serviço hiperlocal

As coisas que a gente vê são as coisas que de alguma maneira tocam a gente. O que não nos toca, passa batido, mesmo que a gente passe por elas todos os dias, mesmo que sejam super relevantes pra outros olhos. Portanto, as coisas que a gente procura pra ler, assistir, escutar, são as coisas sobre as quais temos mais do que curiosidade: são com as quais temos uma certa relação de afetos – dos mais diversos tipos.

Quem nunca?
Às vezes, se ninguém avisa, não enxergamos nem as coisas que a gente adora. “Sabe aquele café na Júlio Conceição, que diz que é de uma família coreana que tem uma fazenda e produz um café incrível?”, perguntou meu pai, depois do almoço de domingo lá em casa. Eu moro no Bom Retiro, ando pelas ruas dali todos os dias e amo café. O lugar é vizinho da minha casa, mas, de verdade, não fazia a menor ideia de onde era, até esse comentário. “Nossa, era aqui? Do laaaado! Delícia :)”. São muitas as coisas que estão aqui, na nossa cara, mas a gente simplesmente não vê. Até que alguém nos peça para olhar de novo – e é incrível ver o que pode acontecer.

A primeira vez que dei uma aula de mapeamento afetivo com a consciência (e planejamento) foi em 2012, na Oficina de Jornalismo, na ONG Casa do Zezinho, no Parque Santo Antônio. Foi o começo da Escola de Jornalismo da Énois.

A gente queria mapear espaços de lazer pra juventude nas proximidades da Casa do Zezinho – e também responder a uma pergunta da Ambev, nossa patrocinadora via Fundo Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente (FUMCAD): existem bares de responsa (que não vendem bebida alcoólica pra menores) no bairro da ONG que apoiamos? O que a turma da nossa oficina de jornalismo encontrou foi bar, igreja, bar, igreja, igreja, bar. Os dois únicos espaços públicos de lazer eram o Campinho do Astro e o Campo do Caju.

Foi lindo fazer esse exercício de lembrar coletivamente do que tinha pelas ruas em que elas e eles passavam diariamente. E foda perceber como tinha pouca coisa que os contemplava no bairro em que viviam. Mas entendendo que o Campo do Astro era um espaço tão importante pra juventude local, decidiram fazer o lançamento da segunda edição da revista que faziam na oficina lá, no intervalo do jogo final do campeonato.

Conhecer ajuda a usar
Usar ajuda a transformar
Transformar ajuda a crescer
Crescer ajuda a criar vínculos
Criar vínculos nos empodera a ser
E ir pra onde quiser

(fiz até um poeminha, que me desculpem os jornalistas)

Esse mesmo exercício de mapeamento afetivo, em que cada um vai lembrado e desenhando no papel as coisas importantes do entorno/caminho/bairro, repetimos em quase todas as oficinas de jornalismo que fizemos pelas periferias e escolas particulares com jovens que passaram pela Escola de Jornalismo da Énois. Funciona como um “quem sou”, uma espécie de apresentação das pessoas que estão naquela turma, porque mostra não só onde ela está inserida, como também as coisas que ela vê por onde ela passa.

Teve uma vez que a gente fez isso com mais de 100 gestores dos CEUs de São Paulo, na Secretaria Municipal de Educação. E foi decisivo pra que o encontro não se tornasse uma roda de lamentos. Quando a gente pediu pra que cada gestor desenhasse, em grupo, o que tinha em volta do CEU em que ele e ela atuavam, a conversa fluiu, o grupo se acolheu, e, veja você, a disputa foi só pela canetinha que estava funcionando bem. Todo mundo queria desenhar o que tinha perto de onde trabalhava. E a gente viu, juntes, quanta potência de relações poderiam ser estabelecidas em cada uma das escolas ali representadas. Ufa, obrigada mapeamento afetivo, salvou o rolê.

E por falar em salvar o rolê
Em abril de 2016 veio a tão tão desejada notícia: o Atacadão iria aportar os recursos, via Lei Rouanet, para que a gente produzisse o guia Prato Firmeza, com a turma toda da Escola de Jornalismo 2016. Cada um dos 10 jovens iria mapear sua quebrada pra gente fazer um guia gastronômico com lugares na cidade que nenhum guia jamais tinha parado pra sentir, ver e comer. Mas a gente só tinha três meses de trabalho (o tempo de cada módulo da EJ, ao final do qual entregamos um produto jornalístico feito pela galera), e a parada ia ser hard.

O foco do nosso segundo módulo era trabalhar texto, jornalismo literário, fotojornalismo e design gráfico. No processo autoformativo, que acompanha todo o percurso da EJ, o objetivo era trabalhar o território de cada um e a diversidade do grupo, que transita por diferentes realidades locais. Pra contemplar tudo, abrimos o módulo com a nossa metodologia de mapeamento afetivo (vale o parênteses e ele é longo: mapeamento afetivo não é uma metodologia nova, muito menos foi a gente que inventou, mas funcionou tanto com o Prato Firmeza, que tivemos até a ideia de fazer esse texto. se você quiser se inspirar em um roteiro pra fazer seu próprio mapeamento afetivo, lá no final do texto tem uma sugestão*. o pessoal do Acupuntura Urbana, por exemplo, usa muito essa metodologia em suas intervenções urbanas. “o mapeamento afetivo configura um outro olhar para a cidade. ao invés de enxergar a estrutura, a dinâmica viária, se trata de descobrir quem são as pessoas, quais são as histórias e potências daquele espaço. uma cidade sem gente não serve para nada, é um lugar sem afeto. e é o afeto, junto com as relações, que vão sustentar as mudanças que queremos para um lugar”, explica Inês Maria, arquiteta que faz parte do grupo. Esse texto aqui traz mais informações relevantes sobre a metodologia).

foto_enois

O pessoal trouxe lugares de afetos. A casa da vó, a casa da mãe, a casa da amiga. O lugar do amor. O primeiro trampo. Um trampo legal. Um curso que mudou a vida. Um centro comunitário em que rola conversa de interesse. Uma violência. Uma violação. Uma dor imensa. E eles vieram vindo, com suas memórias, afetos, alegrias, dores, tristezas, revoltas. E a partir daí, começaram a pensar (com as propostas de lição de casa depois do mapeamento) nas suas relações com a exclusão, a sua quebrada, a comida e o jornalismo gastronômico. Foi forte. E verdadeiro.

Acho que o mais emblemático que ouvi sobre a importância do Prato Firmeza, foi do Alexandre Ribeiro. Ele disse assim: “antes eu levava uma mina que eu tava afim pra comer no bairro só quando não tinha dinheiro pra ir mais longe. Agora, eu digo que vou mostrar o melhor acarajé da cidade – e que ele fica aqui pertinho da minha quebrada”.

E foi assim que o guia se mostrou um lindo processo metodológico para a chegança dos jovens na Escola de Jornalismo 2017. E seu mapeamento se tornou uma metáfora do jornalismo que fazemos aqui na Escola de Jornalismo da Énois: um jornalismo descentralizado e hiperlocal. A turma vem pro centro, troca referências e volta pra casa pra olhar de novo.

(esse segundo parênteses, aqui no finalzinho do texto, é sobre o jornalismo hiperlocal, porque isso faz tanto sentido pra mim, que, ao escrever esse texto, resolvi olhar de novo e ver se fazia sentido pra mais gente. Daí liguei pro Nailson, do Capão News. São 62 mil seguidores, com 90% dos acessos por celular. Quase 99% vêm da cidade de São Paulo, e a imensa maioria do Capão Redondo. As 11 pessoas que trabalham na redação também moram no bairro. “Jornalismo feito de nós para nós”, ele me diz. E funciona? “Pô, a gente faz jornalismo pra mostrar o que de bom tem na nossa quebrada. Como nos últimos 10 anos, as quebradas viram nascer polos culturais fortes, como Fábrica de Cultura, CEUs, Fábrica de Criatividade, que são lugares pras pessoas que moram na região, é importante investir na informação sobre oficinas, cursos, palestras, coisas que estão rolando, pra fortalecer o rolê. E rola, o pessoal comparece!”. E as quebradas se fortalecem).

*1.Desenhe uma área que você conhece muito bem
1.1 para depois do desenho
Foto satélite google Earth + Mapa
Traçado dos seus deslocamentos mais frequentes

2. Pense em dez sentimentos e crie símbolos para eles (coletivamente ou em grupos menores)

3. Transfira esses símbolos para os lugares mapeados no desenho
3.1 Transfira esses símbolos para os lugares mapeados na foto-satelite e mapa

4. Depois responda:
> O que você gosta de lá? O que você não gosta?
> Quais são os lugares onde você mais passa seu tempo? Pq? O que faz lá?
> O que as outras pessoas mais gostam/menos gostam de lá? (percepção)
> Onde você come? Pq? O que sabe sobre a história desse lugar e dessa culinária?
> Quais memórias significativas você tem dos lugares frequentados?

5. O que você transformaria nos lugares escolhidos?
Projeto urbano (mundo físico)
Relações comunitárias
Sua própria relação com o território.

6. O que os espaços frequentados têm que te nutre (física, cognitiva e afetivamente)?

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Amanda Rahra é diretora da agência e escola de jornalismo Énois.

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