No livro O inconsciente político (1992), o crítico literário americano Frederic Jameson propôs uma metodologia interpretativa baseada numa dupla perspectiva, ao mesmo tempo opositiva e complementar: uma primeira inscrita na tradição analítica marxista, cujo pressuposto se inscreve na necessidade de uma prática crítica negativa ou da negatividade, sob o ponto de vista de que, num mundo de opressores e oprimidos, para citar o filósofo alemão Walter Benjamin, todo monumento de e à cultura é também um monumento de e à barbárie, porque, querendo ou não, foi produzido a partir do sofrimento, do desespero, do esquecimento, humilhação, abandono e mortes de milhares ou milhões de outros seres humanos; uma segunda perspectiva analítica que parte de um princípio oposto ao primeiro, porque compreende que, pela simples existência, todo e qualquer artefato cultural inscreve nele mesmo uma vontade utópica, por mínima que seja, de outro mundo.
O método interpretativo proposto por Jameson, portanto, está implicado com o jogo analítico entre negar, em retrospectiva; e afirmar, em perspectiva: negar o que coopta ou compartilha com o abandono dos desterrados da terra, desde antes até a atualidade; e destacar, por outro lado, as chispas utópicas que se inscrevem nos artefatos culturais, como afirmação de coletivas vidas futuras.
Embora goste da proposta metodológica de Jameson e a adote em minhas análises, reflexões e pesquisas, penso que não podemos ignorar o uso recorrente que os opressores de ontem e de hoje (e principalmente os de hoje) fazem da perspectiva utópica presente em todos os artefatos culturais com o objetivo de camuflar a tragédia geral que atinge a vida da esmagadora maioria das populações do mundo, através do flagelo da fome, de guerras, de desempregos e do sem fim de humilhações e privações no campo do acesso à saúde, à moradia, à educação, à terra, à segurança, à dignidade pessoal, familiar, comunitária, simbólica, étnica, de gênero.
Oprimidos que combatem oprimidos
Sob esse ponto de vista, três são os principais usos estratégicos que as burguesias planetárias realizam, na atualidade, em relação às perspectivas utópicas inscritas nos artefatos culturais – mas não apenas –, como narrativas literárias, filmes, letras de música, novelas televisivas.
São eles:
1. Transformar as expressões e conteúdos utópicos potencialmente coletivos em mítica parte natural e inevitável do sucesso dos opressores, de tal maneira a nos instigar permanentemente, em todos os campos da vida, a desejar ser rico, reconhecido e poderoso como o burguês, na suposição de que a única forma de viver feliz e com dignidade é nos tornando poderosos, endinheirados, razão pela qual a ideia de democracia, hoje, passa a ser compreendida e vivida como o direito de realização utópica de ser rico.
Por sua vez, duas consequências negativas emergem desse primeiro uso estratégico da utopia, como afirmação coletiva da vida, pelo sistema de dominância capitalista: a) através dele, todos nós tendemos a afirmar a opressão burguesa, desejando-a e, por outro lado, negando as expressões e conteúdos coletivos da perspectiva utópica; b) ao desejarmos o modo de vida burguês, concentrando nossas energias no desejo de nos tornarmos burgueses, não apenas abandonamos nosso potencial de solidariedade entre oprimidos, mas também tendemos a nos desprezar a nós mesmos, através de uma infinidade de provações, provocações e ações fratricidas baseadas no ódio, na inveja, indiferença, preconceitos econômicos, étnicos, epistemológicos, linguísticos, estéticos, sexuais, de gênero, tanto mais evidentes quanto mais nos esforçamos para produzir a utopia coletiva de um mundo todo nosso, porque de ninguém, razão pela qual os ódios, as invejas, as indiferenças e os preconceitos entre oprimidos (contra oprimidos) são como que um baluarte para proteger os opressores, os primeiros que encontramos, vindo precisamente daqueles que deveriam estar conosco e não contra nós.
O aspecto mais infeliz e evidente desse baluarte de oprimidos que combatem oprimidos, em nome dos opressores, inscreve-se, obviamente, nas guerras interestatais, pois todos sabemos que os soldados ou combatentes dos exércitos de todos os países do passado e do presente são constituídos por oprimidos, de modo que, objetivamente, as guerras são realmente travadas entre oprimidos, em nome de opressores, com exceção dos casos em que o povo toma as armas para defender a soberania de suas próprias vidas coletivas, a única que interessa, como ocorreu no Iraque, Afeganistão, Líbia e em tantos outros lugares e países do mundo, sobretudo quando o que está em jogo é agressão/ocupação imperialista.
O combate à repressão sexual
2. Um segundo uso estratégico que a dominância capitalista realiza da perspectiva utópica está relacionado com a concentração e confinamento das lutas pelas utopias coletivas no passado, ao mesmo tempo em que só podem encontrar apoio no presente se se apresentarem, na atualidade, de forma museológica, na suposição de que as formas de vivências utópicas coletivas devem ser sempre as mesmas, independente do tempo histórico em que ocorreram, se não quiserem ser desacreditadas, como o foram as experiências emancipatórias do final do século 19 e 20, em suas respectivas épocas de realização.
3. O terceiro modo, por sua vez, de apropriação burguesa neoliberal das utopias coletivas está relacionado com o uso e o abuso que a cultura de massa planetária faz delas, das utopias coletivas, com o objetivo de generalizar a ilusão midiática de que a nossa época, diferentemente das demais, é a que finalmente as realiza, no cotidiano, deixando-as de inscrevê-las no futuro, a fim de se exercitá-las plenamente, leia-se, publicitariamente, no presente.
Este terceiro uso estratégico de manipulação das utopias coletivas constitui, em meu entendimento, o mais importante de todos, no que diz respeito à dominação coletiva dos povos, porque sem ele o capitalismo atual não seria constitutivo da própria subjetividade dos povos, tendo, portanto, que se realizar, mundialmente pela via militar, como repressão bélica generalizada, no contexto de uma sociedade de consumo, em que a produção de subjetividades que desejam a sua opressão constitui o verdadeiro coração do modelo de sociedade em que vivemos, principalmente porque são antes de tudo as elites econômicas que efetivamente usufruem desta lógica social fundada na utopia consumista do presente, pelo presente, através do presente, sem culpa e ressentimento, pela evidente razão de que podem comprá-la, privadamente, globalmente, aristocraticamente.
Consideremos, como exemplo, para esse terceiro argumento, as lutas emancipatórias no campo dos direitos civis, travadas no interior do modernidade até 1945, principalmente as relativas ao combate à repressão sexual e, por extensão, as que dizem respeito ao direito de gozar a vida.
Tentativa de responder a uma pergunta
As burguesias contemporâneas se apropriaram de todas essas lutas para si mesmas e vivem sem culpa e sem ressentimento o privilégio de concentrarem excedentes econômicos, assumindo para valer o poder de compra como direito natural de usar e abusar de todos e de tudo. Esse é certamente o motivo cultural da absoluta hegemonia das finanças no mundo contemporâneo, pois a crença de que o gozo da vida é o imperativo categórico justifica plenamente o parasitismo da especulação financeira, razão suficiente para evidenciarmos que hoje a especulação é regra geral, pois é financeira, dinheiro gerando dinheiro, mas também é narcísica, narciso gerando narciso; é cínica, cinismo gerando cinismo; é indiferente, indiferença gerando indiferença; é, enfim, de isoladas e impotentes diversidades de gênero, étnicas, comportamentais, pois cada diversidade gera a si mesma e, assim como a especulação financeira, cada qual gera a si mesma sem lastro na vida real, concreta, coletiva.
E aqui finalmente chego ao principal argumento deste artigo: a globalização neoliberal é parasitária e vive de sequestrar, manipular e privatizar todas as coletivas lutas utópicas dos povos, roubando-as e exibindo-as como privilégios naturais, divinos, de poucos.
E é assim, por consequência, que compreendemos hoje tanto a ideia de democracia como a de liberdade de expressão: ambas são puras formas atuais de especulação, sem lastro na vida comum, de aristocráticos e narcísicos parasitas, que a si mesmos se justificam como o papel moeda tanto da democracia como da liberdade de expressão desencarnadas, a despeito da utopia coletiva de um mundo de verdadeiras liberdades expressivas comuns.
Toda essa longa digressão, no entanto, foi realizada como esboço de tentativa de responder a uma pergunta de uma aluna do curso de Letras da Universidade Federal do Espírito Santo, Sarah Vervloet Soares, que leu meu último artigo publicado no Observatório de Imprensa, “Cultura de Massa: a carnavalização da cultura popular”.
Um utópico movimento de insubmissão
No mencionado artigo, argumentei que o conceito de carnavalização, tal como pensado pelo teórico da linguagem russo Michail Bakhtin, não serve para o mundo contemporâneo porque vivemos numa época em que a cultura de massa carnavalizou a cultura popular e produziu uma civilização do comunismo cultural, de vez que todos somos culturalmente iguais, no mundo contemporâneo, num contexto de extrema hierarquia econômica, marcada pela seguinte razão proporcional: quanto mais comunismo cultural massificado, mais concentração de renda. Logo mais miséria, fome, abandono, guerras de pilhagens.
Em face desse argumento, Sarah Vervloet Soares (aluna brilhante precisamente porque não realiza pesquisa acadêmica fora de seu lastro na vida concreta, comum) me perguntou se eu realmente achava que a carnavalização não teria mais como ser usada pelas narrativas contemporâneas de criação, como a literária, a fílmica, a noveleira, a musical. Diante da pertinência da pergunta, questiono-me, variando o enfoque: não seria mesmo possível o uso da carnavalização, hoje, pelas classes populares?
Por ser um conceito proposto numa perspectiva de utopia coletiva, pela evidente razão de que carnavalizar, tal como pensado por Bakhtin, nada mais é do que uma festiva e iconoclástica desconstrução que as classes populares faziam (fazem?) dos rituais hierárquicos, penso ser possível afirmar que, antes da sociedade do espetáculo carnavalizar a carnavalização popular, esta era utopia coletiva por inscrever, em si mesma, o desejo de um mundo de iguais, de comuns, sem opressores e oprimidos, sem mediações hierárquicas cujo objetivo é domesticar e submeter o povo.
Carnavalizar, em primeira instância, portanto, constituiu um utópico movimento popular de insubmissão, com alegria, através da afirmação comum da vida, entre comuns, invertendo e subvertendo o que se impõe, saberes, poderes, viveres; superioriza.
Em nome do bem viver coletivo
Como vivemos num mundo profundamente hierárquico, sob o ponto de vista econômico, que é o primeiro que interessa, parece-me mais que evidente que a carnavalização continua não apenas possível, seja no plano da criação estética, seja no cotidiano, na vida, como antes de tudo nunca foi tão necessária e vital, em termos de prática simbólica, de coletiva utopia, embora o seu enfoque ou alvo tenha que ser extremamente atualizado.
Na época da cultura de massa, do cenário midiático planetário de carnavalização das expressões e conteúdos utópicos populares, mais do que nunca é fundamental inverter e subverter a metodologia interpretativa proposta por Jameson, através da carnavalização geral das perspectivas utópicas sequestradas pela financeirização não menos geral da vida, sob o regime neoliberal da atual fase do capitalismo; e, ao mesmo tempo, é preciso afirmar a coletividade utópica inscrita na crítica da negatividade, que deve negar claramente a farsa do comunismo cultural da sociedade do espetáculo planetária a fim de afirmar o futuro do comunismo econômico, pós-capitalista, a partir do qual a cultura deverá ser o cenário da revolução permanente da carnavalização de toda e qualquer forma de exploração econômica e simbólica; de toda e qualquer forma de dominação objetiva e subjetiva.
E eis aí o socialismo do século 21, onde a cultura se tornará utópica coletividade de ininterrupta carnavalização de toda e qualquer forma de superioridade e hierarquia econômica, étnica, de gênero, epistemológica, linguística, comportamental, de tal sorte que tudo se tornará esboço de tudo, rumo à democracia sem fim, na qual e através da qual tudo será permanentemente revisto, remanejado, reescrito, em nome do fogoso bem viver coletivo.
O onipresente monopólio da mentira
Carnavalizemos, pois, a carnavalização da massificada humanidade, pelo viés monopólico da sociedade do espetáculo. Carnavalizemos a financeirização total da vida no regime da globalização neoliberal em que vivemos.
Mas onde efetivamente vemos esse segundo grau da carnavalização, o da carnavalização da carnavalização? Podemos lê-las nas narrativas de criação literária contemporânea? Podemos vê-la no cinema? Por acaso a escutamos, dançando festivamente, nos enredos ou desenredos musicais que tocam nas rádios populares?
Onde é possível ver filmes que carnavalizam o cinema americano, com, por exemplo, militantes iraquianos debochando da seriedade do Pentágono, da Casa Branca, de Wall Street, New York Times, CNN? Onde uma narrativa literária que faça chacota de Hillary Clinton, de Obama, ridicularizando seus jeitos e trejeitos dissimulados, farsantes? Onde a carnavalização do carnaval que é a cultura de massa? Onde, enfim, a carnavalização dos verdadeiros poderosos do mundo atual, que são os monopólios financeiros, tecnológicos, midiáticos, militares, urbanos, agrários, da Terra, da vida?
Onde a carnavalização do imperialismo, braço armado de tudo que oprime, submete, humilha, explora, concentra e mata todas as legítimas utopias coletivas? Onde a carnavalização da carnavalização, repito, da sociedade do espetáculo planetária, estratégico, semiótico e onipresente monopólio da mentira da vida roubada de sua utópica coletividade?
Onde?
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[Luís Eustáquio Soares é poeta, escritor, ensaísta e professor da Universidade Federal do Espírito Santo]