Os sinais televisivos que podem ser sintonizados nos bares e vitrines de Buenos Aires foram invadidos no dia 21 de dezembro às 10 horas da manhã por uma chuva de imagens que davam conta da intervenção da Gendarmeria Nacional nas instalações da Cablevisión, a principal empresa do mercado argentino de TV a cabo, propriedade do hegemônico Grupo Clarín. Os debates da Cúpula do Mercosul que ocorriam nesse mesmo momento em Montevidéu foram assim relegados a um segundo plano.
O episódio teve origem em uma ordem judicial assinada por Walter Bento, juiz federal da província de Mendoza, em resposta à representação feita por outro importante conglomerado midiático privado, UNO, do grupo Vila-Manzano. Mas para entender o que está em jogo neste espinhoso evento, é preciso remontar a uma das principais batalhas políticas e culturais da última década: a aprovação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual (LSCA), mais conhecida como Lei de Meios. Não se tratam, de modo algum, de uma “violação da liberdade de imprensa”, interpretação automática proposta pelos principais jornais, com base em uma ideologia que consegue convencer cada vez menos gente.
Nó górdio
O magistrado de Mendoza pretendia forçar a separação entre as empresas Cablevisión e Multicanal, que juntas controlam 80% da televisão a cabo na cidade de Buenos Aires e 40% em nível nacional, por meio de práticas comerciais que são consideradas como “não competitivas”. O paradoxo é que essa fusão foi permitida pelo próprio Néstor Kirchner, um dia antes de entregar a faixa presidencial a sua esposa Cristina, no dia 10 de dezembro de 2007.
O “conflito com o campo” de 2008 (que colocou em questão a renda agrária e financeira do agronegócio) e a promulgação da Lei de Meios um ano depois, selaram a ruptura política entre o kirchnerismo e o Grupo Clarín, outrora aliados. Desde então, abriu-se a possibilidade de avançar na democratização efetiva dos meios de comunicação, agenda na qual há uma tarefa óbvia: deve-se desfazer a posição dominante que ocupa o grupo multimídia Clarín no espectro comunicacional. Neste sentido, o governo de Cristina Fernández de Kirchner tem sido consequente, apesar da suposição geral de que cedo ou tarde os dois pesos pesados negociariam um pacto de convivência.
Primeiro foi o programa Futebol para Todos, implementado desde agosto de 2009, que terminou com o controle sobre as transmissões televisivas da primeira divisão da Liga Argentina por parte do TyC Sports, TV do Grupo Clarín. Graças a essa estatização virtual, todas as partidas são vistas agora pela televisão aberta e de maneira gratuita.
Depois veio a tentativa de regulação estatal da principal fábrica produtora de papel para jornais do país, Papel Prensa, apropriada de maneira ilegítima por uma sociedade entre os jornais Clarín e La Nación durante a última ditadura militar, e utilizada desde então em benefício próprio por esses grupos. A nova composição do parlamento após as eleições de outubro de 2011, que definiu uma cômoda maioria oficialista, torna iminente uma mudança de regras nessa empresa chave para o universo gráfico local.
Há ainda outras frentes onde esta disputa se desenrola com intensidade, incluindo o campo dos Direitos Humanos. Mas “a guerra da tv a cabo” é um dos combates decisivos , se levarmos em conta que a Cablevisión representa nada mais nada menos do que 50% das receitas do Grupo Clarín;e que uma das apostas principais da Lei de Meios consiste em ampliar o espectro televisivo, graças à introdução da tecnologia digital, o que obriga a reorganizar o estado atual da distribuição radiofônica e audiovisual.
As camadas da cebola
Se abandonamos por um momento essa espécie de War (o jogo) midiático, aparecem outras dimensões que atingem a Lei de Meios e tem sido relegadas a um segundo plano pelo espetacular enfrentamento antes resenhado. Abrem-se, assim, duas perguntas incômodas que precisam ser abordadas com urgência.
Uma delas se refere ao mapa comunicacional que emergirá uma vez que o Grupo Claríntenha perdido sua hegemonia, caso tal coisa finalmente ocorra. A aparição do grupo UNO em cena como aliado do governo nacional constitui uma notícia preocupante. Não só porque um de seus donos, José Luis Manzano, é um ex-funcionário menemista, neoliberal e corrupto de primeira hora. Não só porque como organização empresarial e política se opôs tenazmente à aprovação da Lei de Meios. Mas também porque em seus empreendimentos comunicacionais são conhecidos pelos maus-tratos e exploração aplicados aos jornalistas e técnicos, assim como pelo escasso interesse social de sua programação.
Existem outros atores interessados na aceleração da aplicação da importantíssima Lei de Meios. Muitos deles são precisamente seus artífices, que se reuniram em 2004 em torno da Coalizão por uma Radiodifusão Democrática, e formularam os critérios que logo depois seriam recolhidos e promulgados pelo governo. Refiro-me aos milhares de meios comunitários, populares ou alternativos que pululam por todo o país. Poderíamos fazer uma longa lista das dívidas acumuladas pelo Estado para com esses meios: não há nem plano técnico para consolidar sua capacidade emissora, nem uma política de subsídios consistente, nem funcionários de primeiro nível que os atendam, nem programas de capacitação eficazes. No entanto, eles são os sujeitos de uma real democratização, que não pode ficar encerrada nos estreitos marcos estatais, mas sim caminhar para uma verdadeira reapropriação social dos meios de comunicação.
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[Mario Antonio Santucho escreveu de Buenos Aires para a Agência Carta Maior]