Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A língua de Dilma

Contrariando o mito machista de que mulher fala muito, no seu primeiro ano de governo a presidente Dilma Rousseff pronunciou-se menos do que seus dois mais recentes antecessores. Foram 189 discursos em 2011 – praticamente uma fala a cada dois dias. Em relação ao primeiro ano de mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma usou a palavra em 25% menos ocasiões. Já na comparação com o primeiro ano de Fernando Henrique Cardoso, falou 13% menos vezes.

O começo do mandato, porém, não é um espelho fiel de uma gestão, pelo menos no discurso. Lula começou com 251 falas em 2003 e terminou seu governo, oito anos depois, com 353 pronunciamentos ao longo de 2010 – um recorde absoluto de verborragia entre seus pares. Na média, o petista falou 11% mais vezes no segundo mandato vis-à-vis os quatro primeiros anos no Palácio do Planalto.

Se a língua presidencial foi crescentemente acionada na gestão de Lula, sob FHC, tornou-se cada vez menos eloquente. O primeiro de seus oito anos de governo foi o mais palavroso do tucano, com 216 discursos. Ano a ano, Fernando Henrique economizou pronunciamentos e, mesmo tendo uma recaída verbal em 2002, falou em média 18% menos vezes no segundo mandato.

Nos casos de Lula e FHC, há uma semelhança entre as curvas de popularidade e de frequência dos pronunciamentos. Quanto maior a aprovação junto à opinião pública, mais discursos o presidente fazia – e vice-versa. Pode ser uma reação natural de exposição/preservação dos homens públicos, ou simples coincidência.

Na quantidade, Dilma se aproxima mais do tucano do que de seu mentor político. Na média dos oito anos de mandato, Lula discursou 33% mais vezes do que sua sucessora. Já a média anual dos dois governos FHC é praticamente igual à do primeiro ano de Dilma: 184 discursos a 189.

Na forma também, Dilma se aproxima mais de Fernando Henrique. Ambos privilegiaram a leitura à improvisação. Para FHC, por apreço à liturgia do cargo e pelo trauma dos dolorosos estragos que as blagues improvisadas provocaram em sua popularidade. A atual presidente ainda se ressente da pouca prática em pronunciamentos públicos. Lula, ao contrário, nasceu para a política em palanques e comícios, observando as reações do público e improvisando o discurso ao gosto da audiência.

Como consequência, o discurso ensaiado de Dilma é mais complexo (às vezes, mais complicado), elabora frases mais longas (25 vocábulos, em média) e usa um arsenal de palavras mais amplo do que o de Lula. Não que o do ex-presidente fosse simplório: seu léxico de mais de 12 mil palavras é típico de quem fez faculdade. O de Dilma é 3 mil palavras maior e, até por isso, mais difícil de ser compreendido. Se o meio é a mensagem, Dilma ainda tem muito a aprender com Lula.

Estilo

Eles têm diferenças óbvias de estilo. Recém-empossado, Lula iniciou seu discurso na vila Irmã Dulce, em Teresina, em 10 de janeiro de 2003, saudando “meus companheiros e minhas queridas companheiras do estado do Piauí”. A fórmula companheirística se repetiria nos 2.264 discursos seguintes. Na boca de Dilma, os “companheiros” mal passaram da centena.

Sempre que a (falta de) solenidade permite, Dilma começa seus discursos com um “queria saudar/cumprimentar” quem estiver por perto. Podem ser “os presentes”, “os baianos”, “os uberabenses” ou a autoridade mais próxima. O “queria” foi um cacoete repetido mais de mil vezes em 2011. Já “gente”, o vocábulo predileto de Lula, perdeu espaço com Dilma.

A presidente gosta de terminar seus discursos com um “muito obrigada”, de vez em quando manda “um abraço”. Muito diferente do “fiquem com Deus”, recorrente nas despedidas de Lula. “Deus”, por sinal, foi a ausência mais ilustre dos discursos de Dilma. Recebeu apenas 11 citações, e a maioria delas na forma de expressões idiomáticas ou nomes de instituições. Mal comparando, o vice Michel Temer e José Sarney foram citados três vezes mais pela presidente.

No conteúdo, Dilma segue fiel a quem possibilitou que ela chegasse à Presidência. Na “nuvem” que sintetiza as 293 mil palavras que ela disse ao longo de 2011, destacam-se “Brasil”, “país” e “todos”. Enfileiradas em ordem alfabética, formam o slogan marqueteiro de Lula: “Brasil, um país de todos”. Seria coincidência, não tivesse a presidente citado o antecessor 214 vezes em seus discursos. Por comparação, Dilma citou FHC em apenas seis ocasiões – embora, em todas elas, respeitosamente.

Lula

As menções de Dilma a Lula são sintomáticas. Elas começaram intensas nos três primeiros meses de governo, quando ainda estava fresco na memória da presidente – e do eleitor – o esforço de Lula para elegê-la. As citações caíram abruptamente em abril e foram apenas duas em maio. Por essa época, pipocavam especulações sobre o afastamento de criador e criatura.

Lula voltou a aparecer com frequência redobrada nos discursos de Dilma em julho e agosto, justamente quando os ministros começaram a cair às pencas, a maioria acusada de corrupção. Em setembro, quando a ameaça de crise já havia virado “faxina” e estava claro que a presidente ganhava em popularidade com as demissões, Lula surgiu menos da boca de Dilma.

Depois de outubro, quando tornou-se público que o ex-presidente havia sido diagnosticado com um câncer na laringe, o nome de Lula voltou a aparecer com mais assiduidade nos discursos presidenciais. E assim, o “Lulômetro” de Dilma fechou 2011 no mesmo patamar de mais de duas dezenas de citações mensais com que havia começado o ano. A fidelidade se impõe.

PS:Seria simpático se os responsáveis pelo site da Biblioteca da Presidência da República revisassem os links para os discursos dos ex-presidentes. Entre 29 e 31 de dezembro, quando suas páginas foram pesquisadas para este texto, faltavam cerca de 150 discursos de Fernando Henrique Cardoso em 2000 e 2001 – o que era verificado pelo confronto com o acervo do site do Instituto FHC. Também faltavam discursos dos ex-presidentes Itamar Franco (1994), Fernando Collor (1991 e 1992) e José Sarney (1985). Já os de Lula, supõem-se que estejam todos lá: o site do Instituto Cidadania, que cuida da memória do ex-presidente petista, remete diretamente para o site do Planalto quando o assunto é discurso presidencial.

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[José Roberto de Toledo é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo]