O noticioso Século Diário, entre outros meios de comunicação, trouxe importantes informações sobre a questão da dependência química e direitos humanos de pacientes tratados nas chamadas “comunidades terapêuticas” (“Do outro lado do muro”, edição de 03/12/2011).
A matéria trata do “Relatório de Inspeção Nacional de Direitos Humanos: Locais de Internação para Usuários de Drogas”, divulgado recentemente pelo “Conselho Federal de Psicologia” (CFP). No documento, o CFP faz um amplo diagnóstico das comunidades terapêuticas. Segundo a matéria do Século Diário, o documento o CFP “lançou luz sobre territórios pouco conhecidos pela sociedade, as chamadas comunidades terapêuticas, iniciativas da sociedade civil, com pouca ou nenhuma regulação pública e nas quais se desenvolvem práticas que são objeto de denúncias de violação de direitos humanos”.
Na mesma matéria do Século Diário, referente ao documento do conselho CFP, são apontados tipos de violações de direitos humanos dos pacientes das comunidades: “Registramos: interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, (…) intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras.” É não menos perturbadora a revelação de que as violações apontadas “são ocorrências registradas em todos os lugares” e que, “no conjunto ou em parte, compõem o leque das opções terapêuticas adotadas”.
Distúrbios comportamentais e “patologias de base”
Como tudo isso começa…
A dependência química é uma verdadeira “epidemia incontida e fora de qualquer controle” (ainda mais agravada com a “cocaína crack”) que vem se alastrando silenciosamente pela sociedade brasileira. Ainda assim, ela permanece pouco estudada e conhecida. Apresenta-se como uma questão político-social profunda (desde o narcotráfico até seus desdobramentos na área da justiça criminal e das terapias disponíveis para os dependentes químicos), complexa (em função do seu alcance multidisciplinar e intergovernamental) e abrangente (não poupando nenhum local ou grupo sócio-demográfico específico).
Os desdobramentos mais conhecidos e divulgados sobre a questão das drogas ilícitas estão focados principalmente no que tange ao narcotráfico e respectivas ações de contenção delitiva – algo distante do drama social que finalmente essas drogas produzem em seus dependentes/vítimas. Assim, existe uma face específica da epidemia que permanece oculta e invisível – a dos próprios dependentes químicos – enquanto indivíduos com “dramas” próprios, incluindo o da própria dependência, da busca do tratamento, da abstinência, da interação com os eventuais provedores da comunidade terapêutica (profissionais de saúde, seguradoras médicas etc.), bem como das próprias famílias e respectivas comunidades das vítimas. Necessário ter em conta que a débâcle pelas drogas nunca atinge apenas os usuários, como também, direta ou indiretamente, pais, irmãos, parceiros conjugais, famílias inteiras, comunidades, enfim, a sociedade como um todo.
As vítimas do narcotráfico e da consequente dependência química, bem como os familiares mais próximos, são como náufragos que não conseguem ver “terra à vista”. Pior, as vítimas (“grupos de risco”) usualmente são indivíduos em fase de definição no processo de desenvolvimento humano, aí incluídos adultos jovens, adolescentes e até mesmo crianças. Os “dramas” de muitos deles incluem o desajuste familiar, evasão escolar, exclusão social e econômica, bem como distúrbios comportamentais e “patologias de base” (depressão, hiperatividade, transtorno bipolar etc.). Aqueles que eventualmente buscam e podem ser resgatados não conseguem encontrar protocolos públicos ou privados de tratamento prontamente disponíveis, acessíveis e devidamente regulados pelo poder público.
Efeitos nefastos
Em meio a tudo isso, é mais do que notável o vácuo da ação disciplinadora do Estado. E isso ocorre, inclusive, em relação aos ambientes terapêuticos eventualmente existentes, nos quais seres humanos são submetidos a tipicidades de uma “área cinzenta” em relação aos direitos e garantias individuais. Os dependentes químicos, pela própria natureza da “enfermidade física e psicossocial” a que estão acometidos, precisam ser contidos “de fato”. Mas sob que regramentos? Com os provedores submetidos a que obrigações e limites? Com a família e as comunidades podendo ou devendo ter que papel?
Já é mais que tempo do poder público “agir de fato” sobre a gravíssima questão da dependência química, não apenas criando estruturas político-administrativas com nomes alusivos a esse importante problema, mas fazendo com que elas possam efetivamente funcionar, provendo o mais rapidamente possível os bens e serviços para a recuperação das vítimas da “epidemia das drogas”. Entre os eventuais “destinos finais” dos dependentes químicos certamente precisam existir outras opções que não apenas a do sistema prisional ou da própria extinção física. Os órgãos públicos com tal finalidade precisam dar a conhecer à sociedade as opções terapêuticas disponíveis, prontamente estruturando, financiando, ofertando e finalmente fiscalizando seu funcionamento. O tema é por demais profundo, complexo e abrangente para ser deixado ao léu ou sob “a mão invisível” das “forças de mercado”. O Estado, na impossibilidade de conter a oferta de drogas ilícitas, pode, deve e tem de, ao menos, buscar neutralizar os efeitos nefastos do narcotráfico sobre as vítimas diretas desse trágico processo.
É uma questão de cidadania e direitos humanos dos dependentes químicos, das suas famílias e da sociedade como um todo.
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[George Felipe de Lima Dantas é professor, Brasília, DF]