A presença da força policial durante o cumprimento de uma decisão judicial na emissora de televisão argentina Cablevisión foi repercutida no Brasil como uma intervenção do governo Cristina Kirchner no canal de TV. Segundo artigo de Eric Nepomuceno publicado pela agência Carta Maior [reproduzido por este Observatório na edição 674], a decisão da justiça veio de um processo movido por um canal regional de TV a cabo, o Supercanal, que, segundo Merval Pereira, do jornal O Globo, é aliado do governo Kirchner. Os motivos da denúncia, segundo nos conta Nepomuceno, seriam concorrência desleal, prática de preços predatórios, manipulação da grade de exibição, exclusão de canais de notícias que não pertençam ao Clarín, grupo que controla a Cablevisión. A justiça argentina decretou, então, uma interdição judicial por 60 dias no canal de TV.
Nessa mesma semana, o governo Kirchner protagonizou outra situação de contrariedade para os donos dos meios de comunicação daquele país. O governo conseguiu aprovar no Congresso uma lei que torna a produção do papel “um bem de interesse público”, quebrando assim o monopólio do Clarín e do La Nación, os dois maiores do país. Ora, o simples fato de o governo tirar das mãos da iniciativa privada a produção da matéria-prima de todo veículo impresso por si enuncia alguma coisa. Estaria Cristina perpetrando ataques à imprensa “independente”, como propalou a imprensa brasileira? Ou estaria ela resguardando-se de um contra-ataque deliberado contra o processo de mudanças que o seu governo estaria engendrando contrariando os interesses das elites econômicas daquele país? O que estaria se passando, afinal, na Argentina, para um confronto tão aberto entre as empresas de comunicação e o governo?
“Intervencionismo insuportável”
O professor e economista Jorge Beinstein, da Universidade de Buenos Aires, afirma que as turbulências do governo Cristina tiveram início com a negativa do presidente do Banco Central argentino, com seu então presidente se apoiando na autonomia da instituição imposta pelo FMI nos anos 1990, em não concordar com a vinculação do pagamento da dívida externa às reservas, e sim, com as receitas fiscais, o malfadado receituário do ajuste fiscal que tem como consequência o corte de gastos públicos. Mas para o professor, por mais que os interesses da jogatina do mercado financeiro estivessem em jogo, a origem do problema vai além. Remonta, de acordo com ele, à tentativa do governo de taxar as exportações agrárias com “impostos móveis”, ainda em 2008.
Os empresários do agronegócio, mesmo com a alta de preços no mercado internacional, não aceitaram, e a sua rejeição ganhou apoio da elite agrária e de outros setores não necessariamente com interesses imediatos em jogo. Os plantadores de soja, acionistas do Clarín, conforme nos diz Nepomuceno, como não poderia deixar de ser, puseram então seus batalhões de jornalistas “independentes” para atacar o governo, que tinha em mente com o aumento dos tributos, segundo Nepomuceno, elevar a arrecadação para destinação aos programas sociais. Ainda segundo ele, o outro grande jornal argentino, La Nación, tradicionalmente contra mudanças sociais consistentes, faz despudoradamente o seu dever de casa, algo nada constrangedor para quem apoiou o golpe militar de 1976 naquele país.
Ainda com relação à economia, o professor Beinstein afirma que não são significativas as mudanças estruturais na Argentina para que os estamentos econômicos mais elevados estejam tão agitados. Segundo ele, apesar de uma variação para baixo do desemprego, a estrutura de distribuição da renda nacional pouco variou. Até as estatizações promovidas por Kirchner, como a da previdência privada, foi precipitada pela crise financeira global, assim como a da Aerolineas Argentinas significou tomar uma empresa em estado de definhamento.
Nesse sentido, afirma Beinstein, ao contrário de uma luta contra uma expressiva redistribuição da riqueza nacional, o que as elites argentinas querem é apenas garantir uma maior concentração, e como o governo Cristina Kirchner de um modo ou de outro colide num ponto aqui e em outro acolá com os seus interesses, este, para essas elites parasitárias, aparece como o promotor de um “intervencionismo insuportável”, segundo nos diz o professor.
Sistema fundiário
É nesse ambiente econômico-político que se desenvolve o acirramento entre Cristina e os grandes meios de comunicação argentinos. O monopólio das comunicações no país, resumido ao Clarín e ao La Nación, é bastante desigual. Apesar de ambos serem porta-vozes das elites econômicas, o primeiro possui um canal de televisão aberta, o maior deles, controla a TV a cabo, a internet residencial e empresarial. O jornal Clarín teria uma tiragem semanal de 320 mil exemplares e aos domingos chega a circular 600 mil exemplares. O La Nación seria, por sua vez, o porta-voz mais direto das oligarquias rurais.
Dá para ver que a concentração dos meios de comunicação nas mãos de pequenos grupos na Argentina é bem semelhante a do Brasil. O jornal O Globo, por exemplo, nos dá a prova dessa semelhança. Segundo matéria publicada no último dia 21/12, o deputado Francisco De Narváez, um dos líderes da oposição, além de político e empresário milionário, controla, dentre outras companhias, o jornal El Cronista, um dos que seriam afetados pela nova lei do papel. De Narváez seria, se fosse brasileiro, uma espécie de ACM Neto, cuja família controla um conglomerado de mídia com seis emissoras de TV aberta e uma fechada na Bahia, além de rádios FMs, jornal impresso, sites de notícias etc.
Aliás, não faltaria pares ao deputado argentino, que teria como colegas proprietários de meios de comunicação o ex-presidente cassado Fernando Collor de Mello, o presidente do Senado Federal, e também ex-presidente, José Sarney, dentre uma vasta lista de políticos e ex-políticos, para não falar dos “laranjas”, agraciados de longa data com concessões de rádio e televisão quase sempre automaticamente renovadas.
Aqui no Brasil, por outro lado, a situação econômica difere da argentina. O conflito que se tem, inclusive dentro e por parte da mídia, é para saber quem gerencia a calamidade social – se o atual partido da situação, que quando oposição defendia um programa de transformação, ou se o partido antes da situação e hoje da oposição, que quando esteve no governo foi duramente criticado pelos atuais situacionistas, por exemplo, pelo programa de privatizações posto em prática nos anos 1990. As elites, apesar de estarem somente parcialmente no governo, não estão insatisfeitas com os rumos dados à economia desde os tempos do ex-presidente Lula.
Só para não ir muito adiante, na estrutura fundiária brasileira, dados do Incra dão conta de uma pífia diminuição de 0,836, em 1967, para 0,820, em 2010, da concentração de terras no Brasil. Em reportagem da Caros Amigos, o geógrafo e professor da USP Ariovaldo Umbelino de Oliveira contesta inclusive os números oficiais apresentados pelo governo de que durante os dois governos de Lula foram assentadas 624.993 famílias. Segundo ele, não mais do que 151.968 famílias foram assentadas.“Não é que os números do Incra estejam errados, mas o Instituto soma reforma agrária (assentamentos de novas famílias), com regularização fundiária (titulação de terra), com reordenamento fundiário (políticas públicas em assentamentos antigos). Se não bastasse, acrescenta também as famílias atingidas por barragens que foram reassentadas. Por isso, os números são elevados. Mas não correspondem a verdadeira reforma agrária”, diz ele.
Na área urbana, a situação não é diferente. Segundo o IBGE, 11,4 milhões de pessoas vivem em favelas, ou nos “aglomerados subnormais”, como se refere a pesquisa. Segundo o jornal O Globo, este número supera a população do país do qual o Brasil fora colônia, que teria hoje 10,7 milhões de habitantes. E o que é pior: os dados do censo de 2010 apontam para um crescimento de quase cem por cento dessas populações durante o governo Lula, o que é algo sintomático para com a manutenção da estrutura econômica caracterizada pela concentração de riqueza.
Regulação da mídia
Os meios de comunicação brasileiros, ao alardearem casos como os da Argentina referentes à imprensa, buscam espantar com veemência todo e qualquer ensaio que venha do governo no sentido de regular os meios de comunicação. Por conta disso, ficam de prontidão durante os encontros do PT para atacar toda e qualquer resolução interna que aponte no sentido do controle social da mídia, que para eles seriam tentativas de amordaçar a imprensa.
A grita desproporcional com relação à classificação indicativa, o abandono dos representantes dos grandes meios da Conferência Nacional de Comunicação, são só alguns dos exemplos da repulsa implacável desses meios a qualquer coisa que responda pelo nome de regulação. Para os meios, estariam em jogo a violação da “liberdade de imprensa” e a censura prévia. Mas, teria algum sentido esta posição da grande maioria da imprensa brasileira? Qual (is) relação (ões) poderíamos fazer disso com o conflito que se passa entre governo e imprensa na Argentina?
Começando pela segunda pergunta. Não há, como na Argentina, nenhuma tensão provocada por alguma mudança, por mais mínima que seja, em curso entre o governo brasileiro e as elites econômicas. Por mais que na Argentina a elite esteja fazendo muita gritaria por pouco, lá poderíamos avistar algum tipo de conflito que pudesse justificar uma ação aberta entre governo e imprensa, visualizando esta última não só como aliada mas como parte ativa da reação de grupos econômicos ceifados no seu interesse pela ação do governo em mudar a distribuição da riqueza no país. Já no Brasil, quase nada – para ser ainda generoso – está sendo feito para reverter a estrutura social e econômica concentradora de riqueza. As elites aqui se sentem bem confortadas pelo governo, haja vista o aumento do lucro dos bancos (primeiro semestre de 2011), a rentabilidade do agronegócio (as commodities) nos últimos anos etc. Além disso, a concentração de renda, segundo dados do Ipea, segue sem variações significativas. O que justificaria, então, da parte do governo, uma regulação social da mídia?
Bomba-relógio sem hora marcada
O programa do PT amadurecido ao longo de sua trajetória acredita que diversificando a produção da informação, outro tipo de opinião poderia ser formada pela opinião pública, e aí então estaríamos possivelmente diante de um cenário mais favorável a mudanças mais profundas na economia. Essa proposta, por mais que haja um detalhe lacunar aqui ou acolá, por si mesma é louvável. Contudo, ao término do seu nono ano ininterrupto à frente do governo brasileiro, difícil é acreditar que, com o legado político e econômico posto em prática por suas lideranças, o Partido dos Trabalhadores vá protagonizar o papel de impulsionador dessas mudanças, nesse eventual novo cenário com os meios de comunicação já democratizados. Pelas circunstâncias de hoje, pela sua postura e pelo espírito de suas lideranças, o PT, numa conjuntura propícia a mudanças bruscas, estaria muito mais para conservar o ordenamento econômico-social e jurídico, talvez com uma ou outra mudança mas pela via da negociação/conciliação, do que assumir a dianteira e impulsionar um processo de mudanças estruturais na economia brasileira.
Dessa maneira, apesar de o efeito duma eventual aprovação de uma proposta de novo marco regulatório das comunicações no país nesse intuito original, nas condições atuais das lideranças e pelas perspectivas internas do partido, ser praticamente nulo, isto é, devido ao fato da intenção originária das mudanças geradas pelo novo marco servir de impulso para que o partido possa encabeçar o processo de mudanças provavelmente não mais se confirmar (pelo recuo do PT), não é totalmente sem sentido a gritaria da mídia para com eventuais cerceamentos à liberdade de imprensa. Isto porque, basta lembrar, casos como o do ex-ministro Orlando Silva, do PCdoB, partido aliado do governo, diante de fatos evidentes de uso irregular da máquina pública (denunciados pela mídia), foram rotulados pelo partido do ex-ministro como “ataques da mídia golpista”.
Aliás, a velha tese propalada na época do escândalo do pagamento de mesadas a deputados, conhecido como “mensalão” (previsto para ser julgado pelo STF em 2012). Mas, por outro lado, como a história é dinâmica por ela mesma, não é absolutamente despropositada a proposta de regulação da mídia (pelo recuo do PT); ao contrário, a disposição popular pelas mudanças é uma bomba relógio sem hora marcada para estourar. E nesse sentido, todo remédio, e a democratização dos meios de comunicação pode ser um, que a venha precipitar é bem-vindo. O difícil mesmo, nesse momento, é o autor histórico da proposta, hoje no governo, se convencer de pô-la para tramitar.
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[Rogério Castro é jornalista e mestre em Serviço Social]