No dia 31 de dezembro de 1924, em São Paulo, a procuradoria criminal da República denunciou à Justiça o general Isidoro Dias Lopes, líder da Revolução de 1924, e os outros 687 militares que participaram do levante. Com os primeiros efeitos da crise econômica no país após o fim da Grande Guerra e o desgaste da chamada “política do café com leite” – que elegia alternadamente um paulista e um mineiro para o governo federal –, alguns tenentes resolveram organizar um movimento para tentar tirar o então presidente Artur Bernardes do poder. Essa foi a chamada Revolução de 1924.
Classificado na época como conspiração, subversão, conluio e motim, o movimento acabou resultando em um volumoso processo judicial por crime político contra a Constituição e a “pátria”. Mais do que os livros de história, as páginas desse processo contam em detalhes a violência do movimento tenentista, tanto pelos olhos do governo, como dos revoltosos. São Paulo foi bombardeada, ficou sitiada por aproximadamente 20 dias e, no fim, contaram-se centenas de mortos.
O processo da Revolução de 1924 é um dos 70 milhões que passaram a fazer parte, desde outubro, do Programa de Gestão Documental do Tribunal de Justiça de São Paulo. Com isso, a corte pretende dar destino e tratamento adequados a processos que já foram encerrados pela Justiça, entre os quais há documentos históricos. Por meio dos autos da Revolução de 1924, por exemplo, fica-se sabendo que, seis meses após a denúncia da procuradoria contra quase 700 militares, foram expedidos mandados de prisão para 119 deles. Ao folhear o processo original, a sensação é de volta no tempo. As folhas são amareladas, algumas desgastadas. A letra do juiz lembra a caligrafia de um médico, de tão rebuscada. Do total de indiciados, 115 foram condenados à prisão por dois a quatro anos por crime contra o livre exercício dos poderes políticos. Na época, o Judiciário ainda era célere. A sentença é de junho de 1927, só dois anos após o início do processo.
Catalogação por assunto
Desde 1991, a lei federal 8.159 obriga os órgãos públicos em geral a guardar e proteger documentos antigos como instrumentos de apoio à cultura, ao desenvolvimento científico e como elementos de prova e informação. A norma não era cumprida pela maioria dos tribunais, até que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) lançou, em dezembro de 2008, o Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname) para incentivar esse trabalho.
“Há aproximadamente três anos de trabalho nesse projeto”, conta o desembargador Eutálio José Porto Oliveira. Nomeado para coordenar a gestão documental do maior tribunal de Justiça do país – hoje tramitam 18,7 milhões de processos na corte paulista –, Oliveira aceitou de pronto. O desembargador é também um estudioso da história e da filosofia. Em doutoramento na Universidade de Lisboa, ele diz enxergar o direito e o processo com uma visão singular. “A lei é só a ponta do iceberg. Por trás de cada processo sempre há um momento socioeconômico, uma família, um pensamento filosófico”, diz. Ele argumenta que os debates sobre a relação homoafetiva, tema que há pouco tempo chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), começaram décadas atrás e os processos mostram a evolução de tais discussões pela sociedade. “O mesmo aconteceu em relação ao direito de voto à mulher, que por fim se tornou lei. Está tudo registrado nos processos.”
No espaço físico do acervo, no arquivo geral do Tribunal de Justiça, os processos já começaram a ser avaliados por bacharéis em direito, historiadores, especialistas em caligrafia e técnicos que cuidam da higienização e conservação dos papéis. “Nosso objetivo é abrir os arquivos para a sociedade, ou seja, por meio do processo judicial, contar a história do estado de São Paulo, para atrair não só especialistas da área jurídica, mas pesquisadores e interessados em geral”, afirma Oliveira. Será feita uma catalogação, por assunto, de processos relacionados a fatos históricos. “Vamos digitalizar esses processos e, no futuro, disponibilizar tudo pela web.”
Bens da marquesa de Santos
Entre processos curiosos está um de 1878, em que um padre foi acusado de estelionato. Ele teria recebido dinheiro para rezar missas, mas não teria cumprido o prometido. Declarando-se inocente, o padre argumentou que seu acusador cometia os crimes de calúnia e injúria. Por fim, o juiz decidiu que o dinheiro recebido equivalia a uma esmola, o que não causava obrigação de rezar missa. Declarou ainda que, embora ao padre coubesse fazer os registros civis, não era funcionário público. Em 1876, o filho de um endividado já morto entrou na Justiça com uma ação para pedir a liberdade de alguns escravos. Seu argumento era de que, antes de morrer, o pai lhe deixara todos os escravos livres. O problema é que o pai estava sendo cobrado na Justiça por uma dívida e os escravos, que eram considerados coisas pela lei da época, haviam sido penhorados para garantir o pagamento. Como a penhora teria ocorrido antes da lavratura das escrituras de libertação, os desembargadores do então chamado Tribunal de Relação declararam a ação judicial como uma tentativa de fraude à cobrança e negaram o pedido de alforria.
Outros casos interessantes podem ser encontrados no arquivo do tribunal. Em 1929, o pai de uma famosa atriz, por exemplo, teve que entrar na Justiça para que o juiz autorizasse que ela, menor de idade na época, pudesse apresentar-se como bailarina de uma ópera no Teatro Municipal. Sob a fiscalização de um curador nomeado pelo juiz, ele deixou a menina participar. Também é interessante ver a enorme quantidade de bens da marquesa de Santos, lista que ocupa 20 páginas de seu inventário. São casas, móveis, a propriedade de escravas e joias, como uma pulseira de ouro cravejada de brilhantes. A condessa de Iguaçu, uma das filhas da marquesa com o imperador Pedro I, de quem foi amante, entrou com recurso questionando a divisão de bens.
Para o historiador Marco Antônio Villa, professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), que acaba de lançar o livro A História das Constituições Brasileiras – 200 Anos de Luta contra o Arbítrio, em termos históricos, processos judiciais são de enorme importância porque “falam”. Ele diz que, no ano passado, percorreu várias cidades do Vale do Paraíba, em trabalho de pesquisa, e o que mais lhe chamou a atenção foi o descaso em relação à memória. “A iniciativa do tribunal é louvável em um país que não gosta da sua memória histórica e arquitetônica, ainda mais quando se trata de contar a história de uma cidade como São Paulo, que se transformou do início do século 19 até a República.” Villa lembra de pelo menos outros dois livros escritos com base em processos judiciais: Homens Livres na Ordem Escravocrata, da socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco, e O Crime do Restaurante Chinês, do historiador Boris Fausto.
Os processos antigos do arquivo do Tribunal de Justiça poderão ser consultados pelo público na versão digital, mas também deverão ser mantidos impressos. Por lei, processos originados até 1940 obrigatoriamente devem ser preservados em papel. Alguns processos classificados como “de guarda permanente” também. Por isso, a gestão documental não deverá diminuir custos do tribunal. Hoje, a corte paulista gasta cerca de R$ 30 milhões por ano para conservar esses processos. Segundo levantamento do próprio tribunal, digitalizar tudo ficaria seis vezes mais caro. Vários dos processos antigos, como o da Revolução de 1924, têm um número muito maior de páginas do que os processos atuais, por não serem ainda sequer datilografados.
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[Laura Ignácio, do Valor Econômico]