É provável que pouca gente esteja disposta a aceitar que o acidente envolvendo o navio Costa Concordia, junto à ilha de Giglio, na costa italiana, integre um processo de degeneração mais amplo que o considerado à primeira vista. As pessoas preferem a lógica elementar, ainda que, com frequência, ela se mostre incapaz de iluminar suficientemente os acontecimentos. É o bastante para demonstrar que a revolução copernicana não se completou. Quando o Sol nasce, está no horizonte leste. Ao meio-dia, sobre a cabeça de um observador e, no fim da tarde, no horizonte oeste. O testemunho dos sentidos, a lógica elementar, indica que o Sol gira em torno da Terra, e não o contrário disso.
No caso do Costa Concordia, quem conhece um mínimo de navegação sabe, desde as primeiras informações, que: 1) o navio estava fora de rota; 2) o capitão não estava na ponte de navegação. Ou, se estava, esteve alheio às manobras que eram realizadas; e 3) o capitão Francesco Schettino, de 52 anos, 30 deles no mar, é um grande patife (um “merda”, segundo a classificação de um de seus colegas à imprensa italiana).
O que significa dizer que o comportamento de Schettino – traindo um princípio sagrado aos homens do mar ao abandonar covardemente seu navio – não é um ato isolado, mas uma atitude articulada com o que vem ocorrendo na vida pública italiana? Significa que covardias e fugas às responsabilidades na escala exibida pelo capitão do Costa Concordia integram um ambiente maior e, neste sentido, não há como ignorar o deplorável exemplo dado ao longo dos últimos tempos pelo bufão Silvio Berlusconi, só recentemente apeado do poder. E isso, devido à insustentável situação político-econômica a que a Itália chegou.
O “manto cálido”
Talvez seja necessário recorrer ao pensamento complexo, ou pensamento sistêmico – linha de reflexão conduzida neste momento pelo pensador francês Edgar Morin, ainda que ele não seja o primeiro nem o último a se valer desse percurso – para permitir uma associação inteligível. As coisas do mundo, todas as coisas do mundo, estão intimamente associadas, ainda que, na maior parte das vezes, fora de nossa visão a olho nu. Daí a necessidade de se recorrer ao recurso do pensamento complexo, mesmo para a compreensão do caos, ou aquilo que, em termodinâmica, os físicos chamam de entropia.
Em resumo, o capitão covarde e fanfarrão fez o que fez porque tinha, em alguma instância perceptiva, a ideia de impunidade, de que suas decisões não estavam submetidas à lei. Ainda que neste caso estejamos nos referindo às leis naturais, e não à teia burocrática e repugnante dos tribunais que, no fim da tarde de ontem (18/01), na Itália, haviam concedido a Schettino (para irritação e inconformismo da população) o conforto da prisão domiciliar. A lei natural, aqui, é aquela que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo, ou seja, a rocha que estava ali há seguramente milhões de anos e que a rota arbitrária do navio fez com que abrisse em seu casco um rombo de 70 metros de comprimento.
A mídia, ao menos a europeia, e isso deve ser verdade para todo o mundo se for levado em conta o que exibem os telejornais europeus neste momento, faz do trágico e previsível acidente (a se levar em conta o perfil de Schettino) a novela ordinária de sempre. Na edição de segunda-feira (16/01) do jornal espanhol El País, por exemplo, um texto do enviado a Giglio conta a história de um padre que participou do resgate dos tripulantes do navio e se valeu do “manto cálido da Virgem”, guardado na sacristia da sua igreja, para proteger os náufragos que tiritavam de frio. O padre considerou que a “Virgem” não se importaria com o aparente ultraje e o repórter não teve o mínimo pudor em seguir em frente e explorar um veio de sensacionalismo.
O precedente do comandante
É uma cretinice que não chega aos pés do capitão Schettino, verdade seja reconhecida, mas que também não deveria passar despercebida. A mesma coisa pode ser dita da imprensa britânica que, claro, trouxe de volta o fantasma do “Titanic” para uma comparação que não faz qualquer sentido. O “Titanic” chocou-se com um enorme bloco de gelo numa época em que o radar era um recurso do futuro. Schettino conduziu seu barco imprudentemente e deve levá-lo ao fundo do mar, levando em conta as enormes dificuldades de fazer com que flutue, pela arrogância, prepotência e covardia que sempre acompanham gente com o perfil que ele exibe.
Eu estava no mar, do outro lado da Itália, nas águas azuis leitosas da Grécia, quando tive a primeira notícia sobre o “naufrágio” que naquele momento, e até agora, não chega a ser a situação do Costa Concordia. Naquele momento, o navio havia se chocado contra rochas, já que navegava imprudentemente próximo à costa (500 metros contra as 3 milhas, ou quase cinco quilômetros para a cerimônia corporativa e provinciana de exibição aos que estão em terra e que agora deve ser eliminada) e adernara. Mas não era o que se pode classificar de “naufrágio”.
Acompanho a situação do Costa Concordia de Istambul, na Turquia, pela televisão italiana, jornais e telejornais europeus. Os italianos lamentam, com razão, que a patifaria inominável do capitão Schettino não faz justiça à tradição naval do país. Mas não levam em conta que Schettino não foi o primeiro comandante italiano acusado de covardia por abandonar seus homens num caso de acidente trágico. O caso anterior, a que imprensa não se referiu (ao menos pelo que tenho lido ou ouvido), envolveu Umberto Nobile, o comandante do balão “Italia”, que caiu no Polo Norte no começo do século passado e, ao ser localizado, foi o primeiro a deixar o campo de gelo, deixando seus companheiros feridos e desamparados. Quando Nobile desapareceu, a esposa dele recorreu ao explorador norueguês Roald Amundsen, que havia conquistado o Polo Sul em dezembro de 1911, para participar das buscas.
Centro da crise
Amundsen havia tentado conquistar o Polo Norte, mas foi vencido pelo americano Robert Peary. Na verdade, ainda hoje há dúvidas se Peary de fato atingiu o Polo como alegou, mas então foi o generoso Amundsen (repelido pelos ingleses por ter infligido uma derrota a Robert Falcon Scott, que morreu na viagem de retorno polar com seu grupo de assalto final) quem desapareceu. Assim, também com justa razão, Schettino, que deve gerar um adjetivo pejorativo (“seu schettino de merda”) não é o primeiro comandante italiano patife.
Enquanto comandante de uma nação, Berlusconi fez algo bem parecido. Ao abandonar o barco nacional, disse que dava um ciao “a um país de merda”. O desatino do capitão Schettino se deveu à sua arrogância, agora posta a nu. O naufrágio da Itália como uma nave nacional resulta da mesma coisa, ainda que reúna personagens aparentemente tão distintos quanto banqueiros, políticos, economistas e mesmo parte dos jornalistas econômicos, para quem a ortodoxia da “mão invisível do mercado” é (ou era até recentemente) mais sagrada que a Santíssima Trindade. O problema é que quando a Santíssima Trindade entra em pane, como ocorre agora, o Estado é quem cobre os prejuízos. E o Estado, ao contrário do que dizia Luís 14, somos cada um de nós. Os bancos não podem quebrar, mas as pessoas podem passar fome, permanecer sem medicamentos vitais e sofrer outras humilhações. Daí o movimento de resistência que brotou no coração financeiro do mundo, em Wall Street.
Nada muito diferente do que ocorre no Brasil. Quando o desatinado Fernando Collor de Mello assaltou as economias das pessoas depositadas em contas bancárias, incluindo cadernetas de poupança, os presunçosos jornalistas econômicos ficaram literalmente “a ver navios”, como aconteceu com o exército de Napoleão que tentava capturar a corte portuguesa numa frustração que deu origem a essa expressão. A não ser que, circunstancialmente, desta vez e ao menos até agora, não pagamos com a crise econômica (se lembram da pergunta da rainha da Inglaterra sobre o que os economistas estavam fazendo que não pressentiram a crise que nasceu em 2008?). Se estivéssemos no centro da crise, pagaríamos mais uma vez o que nossos avós chamavam de “o olho da cara”.
A vingança da tecnologia
A propósito da patifaria de Schettino, no entanto, é preciso levar em conta pelo menos duas atenuantes. A primeira é que Portugal, a partir da batalha de Aljubarrota que, em 1385, unificou o país sob a dinastia de Avis e recorreu a marinheiros italianos (Manuel Pessagna, aportuguesado para Pessanha) para construir sua marinha, que viria a reformular completamente a imagem do mundo. Segundo que o comandante costeiro Gregorio de Falco, transformado em herói pelos italianos, trocou ordens rudes com Schettino quando ele sorrateiramente abandonava o navio e seus passageiros, incluindo mulheres e crianças, prioridades no salvamento, segundo uma antiga lei do mar. O capitão De Falco (que não atende a mídia e disse que sua função é assegurar a segurança da navegação e nada mais que isso) chorou copiosamente ao se dar conta da fuga covarde de Schettino ao mesmo tempo em que ordenava a ele retornar ao navio e assumir as responsabilidades que cabem a um capitão.
O caso do Costa Concordia ainda durará algum tempo. Os capítulos envolvendo a possível retirada de combustível, a salvatagem improvável do próprio barco – que pode mergulhar em águas mais profundas levando consigo passageiros que até agora ninguém sabe se estão vivos ou mortos –, o impacto ambiental, tudo isso renderá histórias dramáticas emocionais. A propósito, ontem um conservacionista brasileiro atribuía à “gasolina” estocada nos 17 tanques do navio (essas embarcações utilizam diesel) um impacto ambiental.
Será preciso ainda esclarecer a posição da empresa proprietária do navio, que manteve no posto um capitão com perfil emocional duvidoso. Tudo isso combinado atrairá a atenção mórbida da mídia. Ao menos até que outra tragédia se anuncie. Então, tudo cairá no esquecimento, como as acusações falsas de que o Iraque dispunha de armas de destruição em massa que justificaram a guerra no governo de outro grande patife: George W. Bush.
A mídia, na sua essência, se alimenta de sangue, tragédia e brutalidade.
São poucos, e aparentemente em número cada vez menor, os jornalistas preocupados com o que se pode chamar de dignidade humana, se é que isso ainda faz algum sentido. Um grupo, ao que tudo indica, crescente, se pauta pelos 140 caracteres do Facebook.
Isso é o que um autor chamou de “vingança da tecnologia” e que filósofos acusados de pessimistas, como Schopenhauer, Nietzche e Ortega y Gasset, anunciaram como a aurora de uma era de profunda alienação.
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[Ulisses Capozzoli é jornalista, editor do Scientific American Brasil]