Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As redações viraram linhas de montagem

Aos 67 anos, o jornalista Elmar Bones ainda encontra forças para resistir. No caso, a resistência se refere ao estrangulamento econômico em que está mergulhada a JÁ Editores, da qual é proprietário. Resistência também aos rescaldos de uma intimidação política movida pela família do ex-governador Germano Rigotto (PMDB) e às dificuldades de se estabelecer num mercado dominado pelo monopólio de umas poucas, porém poderosas, empresas. Mas, acima de tudo, Elmar Bones simboliza a resistência de um método de se fazer jornalismo – para alguns antiquado, para outros o único possível.

Escaldado em redações tradicionais, como as extintas Folhas da Tarde e da Manhã, revista Veja, a IstoÉ e o Estado de S.Paulo, Elmar não poupa críticas ao jornalismo engessado que, segundo ele, se pratica atualmente nesses ambientes. “Há uma crítica generalizada de que alguma coisa precisa acontecer para dar uma arejada”, observa.

Elmar Bones recebeu o Sul21na sala da JÁ Editores, empresa que vem tocando desde 1986, e conversou por pouco mais de uma hora sobre jornalismo e as dificuldades de conciliar independência com sustentabilidade financeira. Comentou também o processo movido pela família Rigotto contra o jornal , publicação mensal que parou de circular devido ao esfacelamento econômico e político do qual foi vítima – deixando como herança o JÁ Bom Fim, edição específica para o bairro que persiste até hoje.

Sua entrevista:

Como iniciou o seu envolvimento com o jornal ?

Elmar Bones – Entrei quando ele já existia, numa fase em que estava meio paralisado, em 1986. Como jornalista, sempre defendi que não se deve deixar fechar jornal, pois é sempre uma janela e uma possibilidade. O passou por várias fases, mas sempre teve a característica de ser um jornal alternativo. É o alternativo mais antigo em circulação no Brasil (a edição mensal não existe mais, mas ainda circula a edição específica no Bom Fim). É um jornalismo mais ativo, explorando basicamente a reportagem e buscando os temas que estão fora da pauta da mídia.

Seria um contraponto ao que se produz nos jornais tradicionais?

E.B. – Trabalhei muitos anos nos grandes jornais e acho que esse modelo que hoje é dominante e que se configurou nas últimas décadas do século 20 já está superado. Mas ainda existe, porque é o que funciona. É um jornalismo comercial, sustentado por anunciantes, industrializado, com uma certa homogeneidade de texto e de abordagens. A redação vira uma linha de montagem. E a gente sempre utilizou o como um laboratório para testar novos métodos de produzir informação. O método convencional dominante se baseia numa pauta hegemônica e numa hierarquia. Essa pauta é determinada por meia dúzia de grandes grupos jornalísticos, que trabalham superficialmente todos os assunto. Essa prática deixa espaço para um outro tipo de jornalismo.

E não fica mais difícil ganhar dinheiro com esse tipo de jornalismo?

E.B. – Esse tipo de projeto tem uma grande dificuldade, porque a sustentação via banca é praticamente impossível. As bancas são controladas pelos grandes distribuidores, não temos muito acesso, e a logística é uma coisa cara. Por isso mantivemos a edição de bairro, que é gratuita. Durante um tempo o desafio era produzir jornalismo independente e sustentável economicamente. Só que normalmente o jornalismo com independência trabalha contra a sustentabilidade financeira. Essa é a lógica do empreendimento jornalístico. Em poucos momentos o conseguiu essa sustentabilidade.

Por isso optaram por fornecer outros serviços?

E.B. – Percebemos que só um jornal de reportagens não se sustentava, até porque enfrentava problema com as bancas, na medida em que fazia matérias mais agressivas e questionamentos aos grandes jornais. O anunciante também se retraí a esse tipo de jornal. E aí chegamos ao jornal de bairro, para que um equilibrasse o outro, mas ainda era muito precário o equilíbrio. Então desenvolvemos uma área de produção cultural e edição de livros gerados com a técnica jornalística, feito por jornalistas. E isso revelou uma estrutura bastante sustentável.

Mas mesmo os jornais de bairro sofreram bastante com a concorrência.

E.B. – A Zero Hora lançou seus cadernos de bairro e isso nos abalou bastante. Hoje eles estão com os cadernos, mas é a segunda tentativa. Fizeram a primeira lá em 1998. Vieram e arrasaram. A prefeitura estava com o PT naquela época e tinha uma política de apoio aos jornais de bairro. Tinha mais de 40 jornais de bairro em Porto Alegre. Aí a Zero Hora entrou com os cadernos regionais e em pouco tempo liquidaram todo mundo. Se eles vêm para o ataque não tem como segurar, terminam com tudo.

Perceberam que era um filão de mercado?

E.B. – Não, acho que era mais para não deixar ninguém crescer e entrar na área.

De que forma a prefeitura apoiava os jornais de bairro?

E.B. – Incluía os jornais de bairro nos seus planos de mídia. Tinham uma política de destinar uma parcela da verba a eles. Isso é importante não só pelo valor, mas pelo fato de ter um anúncio da prefeitura e uma programação. Isso abre portas para novos anúncios e dá estabilidade O problema desses jornais é a estabilidade, não conseguem manter uma equipe por muito tempo, estão sempre na gangorra.

Como funcionada a escolha das pautas no mensal?

E.B. – Sempre fazíamos reuniões muito longas, com muita discussão, onde todos participavam. Não havia nada pré-estabelecido. De um modo geral, num jornal convencional, dão uma pauta a um repórter e ele vai atrás do assunto. No nosso caso sempre preferimos que o repórter indique a pauta. E havia uma discussão permanente. Hoje nas redações as pessoas nem se falam, é tudo compartimentado e isolado, as ordens vêm de cima e todos cumprem. Essa forma de organização poda os talentos e as capacidades individuais. A reportagem é uma discussão permanente, isso gera muito mais qualidade, mais envolvimento, e sempre se levantam coisas novas. É o que chamo de jornalismo ativo.

O que seria esse jornalismo ativo?

E.B. – É não fazer cobertura baseado somente numa entrevista coletiva, por exemplo. Tem que ir atrás da informação que não está disponível. O jornalismo precisa ir para o caminho que está indo a medicina, que é ser mais preventivo do que denunciativo. Não há jornalismo investigativo, há guerra de dossiês. Muitas vezes isso depois não se prova. E o jornalismo preventivo acompanha os acontecimentos. Talvez seja menos atraente e instigante, por ser rotineiro, mas é mais eficaz. Se trata de fazer o acompanhamento das coisas no momento em que elas acontecem. Um exemplo: as obras da Copa estão tendo um acompanhamento pífio. E depois vai ter um monte de denúncias de desvios. A imprensa deveria estar em cima desde já com uma cobertura intensa, indo nas obras, falando com engenheiros, vendo os projetos e os orçamentos. Não adianta perguntar ao diretor de uma empresa o que está acontecendo. Ele sempre dirá que está tudo ótimo. Um acompanhamento preventivo teria uma eficácia maior, reduziria bastante a roubalheira e permitira um ganho efetivo para a sociedade.

Tu também criticas o fato de que, em geral, os jornalistas hoje vestem muito mais a camisa da empresa do que da profissão.

E.B. – O mercado de trabalho está muito aviltado. Aumentou exponencialmente a formação de jornalistas, mas o mercado está estagnado. A mesma estrutura que tinha a 20 anos é a mesma de hoje, talvez até com menos gente. Há 20 anos tinha sucursais em Porto Alegre com mais de cinco pessoas. Hoje eles têm um correspondente que trabalha de casa. O mercado se estreitou demais. A consequência disso é o medo de perder o emprego. Isso faz com que o jornalista seja mais dócil, menos inquieto e não queira criar problema. Mas no jornalismo, se não tiver disposição de correr um certo risco, não se faz nada. O jornalismo implica sempre um certo risco e uma certa ousadia. E os grandes jornais estão pasteurizados em decorrência da lógica deles, vinculada a grandes interesses.

Tu já trabalhaste em diversas redações. Por que decidiste abandonar esse ramo?

E.B. – Fui ficando fora de esquadro nas redações. Foi havendo um enquadramento muito grande e pouco espaço para sair disso. Então comecei a fazer esse trabalho mais experimental e comecei a fazer projetos culturais, o que se revelou um caminho melhor, mais acidentado, mas de mais vitalidade. Um grande jornal tem nome, força e pode fazer muito. Mas joga a não fazer. Ficam fazendo umas matérias relisentas. Se tem que aprofundar algo, já pega em tudo que é lado e não pode. É como estar num hospital que tem a possibilidade de fazer um transplante e não ir além de um curativo no dedo. Boa parte do que eu sei aprendi com os colegas nas grandes redações, mas chegou um momento que achei que não tinha mais nada, já estava andando para trás. Um grande jornal não oferece perspectiva de carreira, a não se que tu fiques puxando saco para virar chefe. Então preferi sair fora e tentar um caminho mais autônomo, fazendo projetos experimentais e tentando desenvolver uma metodologia que possa criar algo diferente do que temos hoje.

Que impacto teve o processo que a família Rigotto moveu contra o JÁ no fechamento do jornal?

E.B. – No processo por dano moral o jornal foi condenado a pagar uma indenização de R$ 17 mil. Quando houve isso, nem era tão problemático para o jornal. Mas tentei resistir ao máximo em todas as instâncias para não aceitar essa condenação, porque é uma coisa completamente absurda. A reportagem que gerou a condenação gerou uma outra sentença (no processo criminal) do mesmo tribunal dizendo que a reportagem era correta, de interesse social e não ofendia ninguém. Mas ao se arrastar, o processo foi gerando efeitos colaterais políticos. Quando começou, em 2002, o Germano Rigotto (PMDB) era candidato ao governo do Estado. Quando houve a decisão, em 2003, ele já era governador. E aí as coisas mudam de figura, porque o jornal foi condenado em função de uma ação movida pela mãe do governador, uma senhora octagenária. Ninguém queria saber os detalhes. Pensavam: “o jornal foi condenado, gerou dano moral à mãe do governador, é um jornal desaforado”. Quando fui na audiência, a juíza me tratou como o editor de um pasquim qualquer. Ela nem tinha lido a matéria. Levei os papéis, expliquei, e ela mudou de postura. Então esse efeito se propagou no meio jornalístico e publicitário. No governo, automaticamente, o jornal e a editora foram banidos. Como o governo é o principal anunciante do Estado, estar mal com ele é estar mal com todas as maiores agências de publicidade. Sentimos isso pesadamente. Isso foi somado a um conjunto de fatores conjunturais que nos levou a uma situação de insolvência.

Na tua avaliação, o objetivo do processo era mesmo estrangular política e economicamente o ?

E.B. – Inicialmente o objetivo era ter uma sentença favorável para poder desqualificar o conteúdo da reportagem e tentar regular (a produção de outras). E o caminho natural seria que eu tivesse feito um acordo. Eu teria resolvido isso e talvez até voltado ao mercado. Mas eu não tinha feito nada de errado. Fazer um acordo seria trair os próprios princípios do jornal. Resolvi entrar com recursos e até hoje não paguei nada. E hoje o jornal não tem mais chão nenhum pra negociar. Ainda dentro dos efeitos desse processo, tínhamos conseguido refinanciar as dívidas do pelo Refis, da Receita Federal. Fui acolhido no programa, renegociei as dívidas e estava pagando normalmente. Mas aí com os apertos financeiros (em decorrência do processo da família Rigotto), houve atraso no pagamento de algumas parcelas e fomos excluídos do Refis. Entramos na Justiça, ganhamos em primeira e em segunda instância e voltamos para o Refis. Mas houve um recurso da União ao STJ, passados mais de dois anos, e uma outra sentença nos exlcuiu do Refis. Então toda a dívida renegociada venceu e o que voltou para ser quitado, mesmo após cinco anos de pagamentos, com juros, correção monetária e multas, aumentou em dez vezes o valor.

E como está o processo de fraude na CEEE (assunto da reportagem alvo de processo pela família Rigotto)?

E.B. – A história da reportagem é a história do Lindomar Rigotto, que era um administrador de empresas que trabalhava na CEEE e se envolveu no que é considerado o maior desvio de recursos públicos no Estado, segundo o Ministério Público. E aconteceu uma sucessão de eventos violentos, até culminar com a morte dele em Capão da Canoa no carnaval de 2001. O foco da reportagem, o processo que envolve a CEEE, vai completar 16 anos em fevereiro e ainda está em primeira instância, corre em segredo de Justiça e não se sabe quando terá fim. Tem mais de 100 volumes. E o foi condenado por isso. A matéria é absolutamente fria, factual, sem adjetivação. E tudo que fala a respeito do Lindomar, ou está nos inquéritos da polícia ou em depoimentos da CPI que houve sobre o assunto. Na ação, o advogado (da família Rigotto) alega que a reportagem insinua que Lindomar era traficante. A matéria somente diz que o delegado Claudio Barbedo, que coordenou o inquérito, achou relevante colocar no inquérito que uma das testemunhas disse que o Lindomar estava envolvido com tráfico de cocaína.

Além desse processo, agora tem outro, da RBS, que reivindica a posse da marca , em função do Jornal do Almoço.

E.B. – Encaro isso com naturalidade. Nos grandes grupos, a lógica é não permitir que ninguém cresça. Não tínhamos o registro da marca, porque pertencia a uma empresa de São José do Rio Preto e só em 2009 ficou liberada. Ficamos sabendo no início de 2010 e começamos a entrar com processo para obter o registro. E o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) acolheu nosso pedido, só que sempre abre um prazo para contestações. Dentro desse prazo, a RBS contestou. Eles têm o registro da marca JA, só que numa outra categoria. Eles querem que o INPI não aceite o meu pedido, alegando que vai prejudicar a marca deles. Não acredito que o INPI vai fazer uma barbaridade dessas. É da lógica desses grandes grupos monopolistas não querer deixar nada pra ninguém. Esse processo ainda vai longe. Mas uma coisa tenho certeza: não vão impedir o de circular. Pelo menos não pelo caminho legal.

Tu participaste de uma experiência inovadora entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980: a Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre, que editava o Coojornal. Ainda é possível viabilizar um jornal feito por jornalistas, não por empresários?

E.B. – Os diversos formatos não são excludentes. Tem que haver uma mudança no jornalismo. É preciso sair do jornalismo comercial e partir para um jornalismo mais envolvido com os interesses da sociedade e não com os interesses dos grupos anunciantes. Há grande espaço para estruturas alternativas de produção de informação. A Coojornal estava se estruturando e competia no mercado em condições de igualdade. Em determinados momentos até pagava melhor do que as empresas. Então ficou provado que é possível, que esse tipo de organização os jornalistas conseguem estruturar e produzir com grande eficiência e com boa dose de sustentabilidade. Talvez hoje as condições de fazer isso fossem até melhores. Mas há um certo desencanto e descrença com as possibilidades alternativas na comunicação. Há uma crítica generalizada de que alguma coisa precisa acontecer para dar uma arejada, mas até agora os projetos alternativos patinam. Tem coisas boas, como Sul21, a Carta Capital e a revista Fórum, em São Paulo. Mas de um modo geral essas experiências não têm muito amparo ou a quem recorrer.

E tu pensas em retomar o mensal?

E.B. – Em 2011 eu resolvi apenas manter as coisas funcionando, estava meio sem rumo… E muita gente tem me procurado, especialmente no final do ano passado, e começamos a discutir. Só vou me interessar em achar um caminho se tiver mais gente disposta a apostar junto, a se envolver, a ser dono também. E aí surgiu a ideia de fazer uma cooperativa. Já fizemos três reuniões, tem 20 pessoas nessa discussão. E para não ficar só no papo conceitual, estamos preparando uma cobertura do Fórum Social Temático no nosso site e, dependendo das circunstâncias, lançaremos uma edição impressa.

A cooperativa seria o formato ideal?

E.B. – Sim, é uma estrutura muito democrática. E é simples e desonerada do ponto de vista jurídico. A gestão é por consensos, baseada em conselhos. É um formato bastante interessante e adequado. Mas estamos discutindo uma cooperativa de leitores, que envolveria também jornalistas. Isso tudo é uma ideia ainda, não sei como os leitores entrariam, está tudo em aberto. A ideia é criar logo, não adianta ficar discutindo teoricamente, tem que partir para a prática para ver quais os problemas e encontrar as soluções. Se não houver esse entendimento de um grupo, dificilmente o jornal mensal de reportagens tem condições de retornar. É algo que dá muito trabalho, muito incômodo, nunca é leve, e para valer a pena para uma empresa tem que ser rentável. E só será rentável se deixar de ser independente. Mas se conseguir envolver um grupo maior, abre possibilidades de sobrevivência.