O sistema interamericano de direitos humanos subsistirá após 25 de janeiro de 2012? Essa é uma das hipóteses a ter em conta aquando da reunião dos embaixadores do Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos (OEA), que terá lugar nesse dia. Longe de constituir um mero ajuste de gestão, a reforma do funcionamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ratificaria a lamentável ofensiva política de certos Estados contra uma de suas instâncias, um organismo essencial para a defesa das liberdades públicas no continente: a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão.
“Precisamos de um novo sistema interamericano, pois a OEA foi capturada pelas visões norte-americanas que a tornam ineficiente e pouco confiável”, declarou recentemente o presidente equatoriano Rafael Correa, promotor da reforma. Será verdade? Desde quando? Seja como for, a fórmula tem o mérito de sublinhar a dimensão política da escolha que se avizinha. Elaborada por um grupo de trabalho formado pela própria OEA, a 29 de junho de 2011, a pedido dos Estados já referidos, a reforma se baseia em três pontos aparentemente inofensivos. Mas só aparentemente.
** Um relatório anual único da CIDH incorporaria a partir de agora o conjunto das contribuições de seus relatores especiais, sendo que atualmente a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão é a única a redigir um relatório próprio, examinando ao longo de mais de 300 páginas a situação detalhada de cada país.
** Cada relatoria, grupo de trabalho e unidade [da CIDH] passaria a receber recursos “adequados, suficientes e equilibrados”. Hoje, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão é a única que não recebe financiamento diretamente do orçamento da OEA, gozando da faculdade de angariar seus próprios fundos, até agora superiores aos das outras agências semelhantes.
** Um código de conduta se aplicaria aos Relatores Especiais em nome da coordenação com os Estados-membros, restringindo a possibilidade dos primeiros de se expressarem sobre casos em curso.
O relatório é incômodo?
Visibilidade. Financiamento. Independência. Estes são os pilares fundamentais da instituição que esta reforma procura quebrantar. Argumentar que essas recomendações visam apenas a responder à necessidade de racionalizar o funcionamento da CIDH não resiste a uma análise mais séria.
A primeira proposta parte do princípio de que o atual documento anual pormenorizado da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão é, no mínimo, inútil e, no máximo, despropositado. Um relatório anual abrangente e coerente será menos útil do que um sucinto resumo do estado da liberdade de informar à escala do continente, que omitiria as consideráveis variações existentes entre os diferentes países? Um resumo, para mais, abafado pela síntese geral negociada entre os sete relatores especiais com missões diversas? Esse método não responde aos critérios de uma informação completa e transparente que as opiniões públicas reclamam.
A incongruência da primeira proposta esconde dificilmente a perversidade da segunda. Responsável por seu próprio financiamento, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão consegue assim financiar (entre outras despesas) seu relatório. O relatório é incômodo? Eliminemos o financiamento! Os Estados pagariam de acordo com suas possibilidades e um determinado montante, seguramente escasso, seria afetado ao relator especial, que assim se veria sem fundos para realizar missões no terreno ou convocar audiências em que os funcionários dos Estados dialoguem com cidadãos e ONG. Será esse o objetivo pretendido?
O “direito à honra”
Sim, se considerarmos a terceira proposta, onde o “código de conduta” – substituindo o regulamento da CIDH atualmente aplicado – se assume como a fachada de uma verdadeira censura. Um relator, mesmo sem fundos, ainda pode enviar comunicados ou recomendações aos Estados membros no caso de violações flagrantes das liberdades fundamentais. Embora enfraquecido, ainda se faz ouvir. Cortemos-lhe a voz! Se essas três propostas ou uma delas (sobretudo as duas últimas) forem adotadas a 25 de janeiro de 2012, o último dos relatores especiais da OEA a ser criado será o primeiro a morrer. Sacrificado, ao fim de quinze anos, aos caprichos de governos incapazes de separar a crítica da conspiração, a postura ideológica das regras de direito. Pois é disso que se trata.
A neutralização encoberta da Relatoria Especial não é acidental, nem por seu momento nem por sua proveniência. A iniciativa parte de um governo ressentido após ter recebido críticas unânimes contra si, mesmo além fronteiras, por ter respondido de forma desastrada aos ataques – às vezes injustos e extremos – dos orgãos de imprensa mais importantes de seu país. Uma multa exorbitante contra um diário e penas de prisão para seus representantes são um convite à auto-censura e um revés para a jurisprudência interamericana. A Relatoria Especial não fez mais que desempenhar seu papel de guardião desse direito continental, exigindo a despenalização dos delitos de imprensa, no Equador mas não só. Como também fazia parte de sua missão relembrar a um poder executivo preocupado pelo seu “direito à honra” que esse direito também se aplica aos jornalistas, cidadãos e representantes de ONG, regularmente tratados como inimigos e injuriados nas “cadenas” oficiais. No Equador, mas não só.
Cidadania universal e adulta
Não havia necessidade de que a polarização existente em vários países da região se estendesse às instâncias interamericanas. Pior ainda, as propostas equatorianas permitirão ocultar o balanço de outros países, onde profissionais da informação, jornalistas comunitários, defensores dos direitos humanos ou simples internautas pagam sua coragem com suas vidas. Como no México, devastado por cinco anos de guerra federal contra o narcotráfico. Ou nas Honduras, corroída pela violência nascida do golpe de estado de 2009.
Uma soberania nacional promovida a dogma não se coaduna com uma vigilância cidadã sem fronteiras e exige interlocutores internacionais. A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA tem, hoje mais do que nunca, razões para continuar existindo. Mantendo sua capacidade de intervenção atual, os Estados membros demonstrarão que não temem uma cidadania universal e adulta.
Olivier Basille, diretor-geral de Repórteres Sem Fronteiras
Maria Pia Matta, presidenta da Amarc-Internacional
Benoît Hervieu, Escritório das Américas de Repórteres sem Fronteiras
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