Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As nossas melhores armas

Convidado pela Folha de S.Paulo a expressar posição contrária à blietzkrieg sobre Pinheirinho, como contraponto à defesa do cumprimento cego de decisões errôneas e desumanas da Justiça feita por um tal de João Antonio Wiegerinck, o grande Plínio de Arruda Sampaio produziu uma análise corretíssima da doença, mas receitou um remédio letal para o paciente que pretende curar e para muitos mais: a defesa das ocupações pela via armada (ver íntegra aqui). Eis sua argumentação:

“Pacífica, despolitizada e sem organização, essa população tem aceitado a situação intolerável sem recorrer à violência. Até quando? Isso vai continuar acontecendo enquanto os partidos de esquerda deixarem de cumprir seu papel de conscientizar e organizar essa massa, para que ela resista a esses ataques de armas na mão. Na hora em que isto for uma realidade, não haverá violência porque a consciência dessa realidade será suficiente para manter os cassetetes na cintura.”

A revolta de Plínio é pra lá de justificada e compreensível. Seu impecável relato dos acontecimentos mostra mesmo uma situação inaceitável numa democracia. Mas, se a esquerda conscientizar e organizar a massa das ocupações, para que resista aos jagunços fardados com armas na mão, vai se tornar ela própria parte do confronto.

A correlação de forças

Aí, as hipóteses serão apenas duas:

1. Organizando tão somente os ocupantes, não os explorados e excluídos em geral, as lições do passado apontam para um quadro bem diferente daquele sonhado por Plínio, com os cassetetes permanecendo, sim, na cintura, mas porque substituídos por fuzis e lança-chamas – ou seja, a esquerda e os ocupantes acabariam esmagados pelos efetivos a serviço da propriedade, cujo poder de fogo, claro, é infinitamente superior;

2. Se a esquerda partir para a organização dos trabalhadores e excluídos em geral, no sentido de respaldarem a resistência de armas na mão aos crimes consentidos pelo Executivo e avalizados pelo Judiciário (como foi o caso do Pinheirinho), a radicalização de parte a parte inevitavelmente desembocará numa luta armada como a que foi travada contra a ditadura de 1964/85.

Nada indica que o desfecho seria diferente hoje.

Daquela vez, estavam bloqueados todos os caminhos democráticos para a contestação do regime implantado mediante golpe e sustentado por meio do terrorismo de Estado. Entre resignarmo-nos à lei do mais forte ou lutarmos contra o arbítrio, alguns milhares fizemos a opção mais digna, pegando em armas a despeito de estarmos plenamente conscientes do quanto a correlação de forças nos era desfavorável.

Fomos heróis. Fomos mártires. Fomos massacrados.

A resposta policial

Atualmente, embora a democracia formal sirva como biombo para a ditadura do capital, ela pelo menos nos garante a possibilidade de tocarmos os corações e esclarecermos as mentes. Graças, principalmente, à quebra do monopólio da formação de opinião que a internet nos possibilitou, estamos, pouco a pouco, com trabalho de formiguinha, estimulando em novos contingentes o desenvolvimento de uma consciência crítica e antagônica ao capitalismo. Ampliamos e rejuvenescemos nossos efetivos a olhos vistos. Já predominamos na web e isto nos deu fôlego suficiente para vitórias antes improváveis, como a que obtivemos no caso Battisti e ao rechaçarmos o atentado à liberdade de expressão perpetrado em São Paulo, quando a Marcha da Maconha foi reprimida.

Mas a mídia a serviço das más causas ainda consegue fazer com que 82% dos paulistanos aprovem uma resposta policial para um problema social, como foi o caso na cracolândia. E isto apesar das evidências gritantes de que, além de desumana, a operação fracassou rotundamente, a ponto de a própria Polícia Militar admitir que os usuários de drogas foram apenas esparramados por, pelo menos, 27 outros pontos da cidade (ver aqui).

Cidadãos no lugar certo

Então, com todo o respeito que Plínio de Arruda Sampaio, com sua exemplar trajetória de lutas, merece dos que travamos o bom combate, desta vez ele foi traído pela emoção. A análise serena nos recomenda que:

>> continuemos levando sempre em conta a correlação de forças – ou seja, que não radicalizemos as lutas além de nossa capacidade real;

>> não forneçamos trunfos e pretextos para a direita golpista que mostrou suas garras na USP, na cracolândia e no Pinheirinho;

>> prossigamos, ao invés disso, disseminado nossas ideias em escala cada vez mais ampla e resistindo às investidas autoritárias com as armas do espírito de justiça e da superioridade moral, não com armas de fogo.

O que faltou em Pinheirinho não foram necessariamente armamentos. Se, posicionados ao lado dos coitadezas da ocupação, lá estivessem, digamos, 50 mil cidadãos pacíficos e determinados, provavelmente isto teria sido “suficiente para manter os cassetetes na cintura”.

Vamos é trabalhar para termos 50 mil bons cidadãos no lugar certo e na hora certa, da próxima vez.

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[Celso Lungaretti, jornalista e escritor, é veterano da resistência à ditadura militar]