Em agosto de 2011, o Observatório da Imprensa publicou meu artigo “Por novos discursos midiáticos”, no qual abordei o conceito de “fascismo social”, de Boaventura Santos, e adiantei o que chamo de Dispositivo Pós-Colonial, ou DPC. Relembrando: o “fascismo social” é “um tipo de regime no qual predomina a lógica dos mercados financeiros em detrimento de grandes setores das populações, gradativamente distanciados e excluídos do campo de direitos sociais adquiridos nas últimas décadas”. O risco, alerta Santos, “é o da ingovernabilidade”. Presente ao Fórum Social de Porto Alegre quando da expulsão dos moradores do Pinheirinho, Santos, ainda que não referisse diretamente ao seu próprio conceito, demonstrou como o “fascismo social” é presente na sociedade brasileira e reafirmou a necessidade de se contrapor a ações como aquela que, com o aval do Estado, beneficia setores dominantes e opressores em detrimento do bem público e social (ver aqui).
O caso do Pinheirinho é grave e preocupante e alinha-se a outros acontecimentos recentes de violência estatal. Entre outros, estão a carga da Polícia Militar contra estudantes em São Paulo (USP) e contra professores cearenses, ambos em 2011. Vale lembrar que, já neste ano, a Polícia Militar foi autorizada pelos governos do Espírito Santo, do Piauí e de Pernambuco a carregar contra estudantes, em protestos contra reajustes do transporte coletivo.
Aqui há perigo. São Paulo está nas mãos dos debilitados tucanos, do PSDB, que há quase duas décadas se aliou à direita financista, mas Ceará, Piauí, Pernambuco e Espírito Santo são estados governados pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), o que demonstra que as concessões ao “fascismo social” não são exclusivas da direita, mas extravasaram também para a centro-esquerda – e às vezes com o silêncio conivente de partidos de esquerda.
Discurso legalista e higienista
Nos meio de comunicação convencionais, as abordagens críticas ao “fascismo social” permanecem restritas aos espaços já consolidados (revista CartaCapital, Rede Record), com raras e bravas exceções, como a do jornalista Ricardo Boechat em seus comentáriosna Rádio Bandeirantes.
E eis que em meio ao caos ressurge com força o que outrora chamei de DPC, discursos e estratégias que os governos exercem sobre suas próprias populações, “impondo normas que visam tanto a justificar ocupações e dominação de territórios estrangeiros, quanto à imposição de determinações internas. Tais normas são geradas por governantes que necessitam coagir as populações nacionais e são sustentadas e difundidas pela mídia”.
A Rede Globo (não por acaso) permanece sendo o campo privilegiado de propagação do DPC. Se na TV aberta se esboça um certo pudor e contenção, estes se desnudam nos canais fechados da Globo, o que ficou patente em entrevistas recentes conduzidas por Monica Waldvogel. Para além do bem e do mal, o DPC resulta no que se pretende, ou seja, coagir populações com discurso institucional legalista e higienista, conforme diz a edição da Folha de S.Paulo de domingo (29/1): “Polícia na cracolândia é aprovada por 82% em SP”.
Brasil não precisa de inimigos
O que fazer nesse campo confuso, onde tanto o “fascismo social” quanto o DPC são gerados à esquerda e à direita? Talvez estar atentos para o que muitos vêm chamando de períodos pós-institucionais, a eclosão de movimentos não necessariamente estruturados ou vinculados a organizações governamentais e não-governamentais (nesse sentido sugiro leitura de análise de Emir Sader).
Entretanto, permanece relevante o papel de pensadores que se inserem na mídia para tratar de casos que passam ao largo da “neutralidade” jornalística e exemplo disso é o artigo “Razão, desrazão”, do sociólogo e filósofo Daniel Lins, no jornal cearense O Povo (29/1), acerca da violência estatal no Pinheirinho: “A exclusão da loucura emerge no domínio das instituições mediadas pelo enclausuramento psiquiátrico ou social. Exilado em sua diferença intratável, o destino do louco ou do pobre é o confinamento moral, social” (ver aqui).
No mesmo nível de importância no combate ao DPC estão os sites e blogs no estilo do Observatório e tantos outros (Vi o Mundo, Conversa Afiada, Escrevinhador, Luis Nassif, Carta Maior etc.). Estes, mais do que a mídia convencional, primam pela proximidade entre jornalismo e pensamento. Portanto, parece urgente e preciso, cada vez mais, reforçar e manter a aliança entre opinião e reflexão, esta arma poderosa que causa horror aos jornalões, às TVs e ao poder institucionalizado.
Pinheirinho, polícia contra estudantes e professores, magistrados nababos, prédios desabando, mídia sem regulação. O Brasil, definitivamente, não precisa de inimigos externos.
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[Túlio Muniz é jornalista, historiador e doutor em Sociologia pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra]