O Fórum Social Mundial continua caótico. Nesse aspecto, em tudo semelhante ao mundo que pretende substituir. Talvez também semelhante ao outro mundo possível que propugna – ideia que ajudou a inaugurar desde a virada do milênio aqui mesmo, em Porto Alegre, em 2001. Mas isso não se pode saber, o mundo continua sua marcha e o fórum, neste ano rebatizado por Fórum Social Temático, também.
É um caos de muitos idiomas, sotaques e vontades. A extensa programação é como um jogo de espelhos. Depois de 10 anos, ainda é tarefa complicada encontrar o prédio ou a sala certa para as atividades programadas, quando não são canceladas sem prévio aviso. Não que isso não traga surpresas interessantes, como debates inusitados nos quais personagens remotos ladeiam-se até mesmo com os próprios idealizadores do fórum, pessoas com extensa vida política que, por vezes, são tomadas como se o próprio fórum fosse. Ambos estão ali para ouvir e se fazer ouvir e isso também vêm mantendo-se desde 2001, assegurando um tipo de fôlego do qual o Fórum é de certo modo dependente, ainda que grande parte das atividades tenha cunho declarativo ou expositivo.
A despeito dos múltiplos debates periféricos que há, a ideia do fórum assenta-se em um centro. Os cartazes e panfletos espalhados por Porto Alegre são afirmativos. Eles reforçam uma ideia principal: “sair do capitalismo”. Que o capitalismo não é um lugar, como uma sala ou um território, não há quem questione e boa parte dos participantes do Fórum não pensa nessa ideia de forma tão simplista como se pode querer fazer crer mesmo que, para bilhões de pessoas no mundo inteiro, concretizar essa ideia pudesse ser absolutamente desejável, porque são claramente desfavorecidas do ponto de vista da dignidade humana, sem que seja necessário adentrar muito no terreno dos percentuais oferecidos nos relatórios da ONU e suas agências.
Agenda comprometida
Mas a imagem de “utópicos”, “pós-alguma-coisa” é insistentemente colada aos participantes do Fórum. A sedimentação dessa pecha se dá principalmente via imprensa, mas de uma forma que restem mudos as milhares de iniciativas que sustentam o próprio movimento e seus protagonistas. O foco é seu tema central – paradoxal que ele é – ilustrado com imagens de manifestações ao ar livre protagonizadas em sua maioria por estudantes. Apesar disso, um fantasma ronda a cobertura de mídia e as análises sempre tão taxativas acerca do Fórum Social Mundial. Trata-se da crise econômica mundial, tantas vezes denunciada nestes últimos 10 anos sob as tendas do Fórum e agora evidente em qualquer, como se sabe bem.
Nestes dias (o Fórum transcorreu entre os dias 24 e 29 de janeiro), não se encontra vestígio de um cinismo até cabível, como um que reproduzisse aquelas placas em jogo de futebol “eu já sabia”. Ninguém está ali comemorando a situação do povo grego ou o colapso financeiro das bolsas de valores europeias ou norte-americanas. Insiste-se em afirmar que um novo mundo possível continua necessário e já que os próprios organismos internacionais fraquejam em demonstrar os indicadores resultantes (assim como aventar culpados) da crise global, o que cala nas bocas é mais o desafio de superar a fácil constatação da crise que propriamente a dificuldade em engendrar uma nova aventura social capaz de competir política e socialmente com o modelo predominante.
Ao contrário das edições anteriores, neste ano o fórum é chamado “Fórum Social Temático” e seu foco são justamente a crise capitalista e as justiças social e ambiental. Na periferia do Fórum, e um pouco distanciado do tema central, centenas de atividades têm outro enfoque. São oficinas, palestras e debates com assuntos fora de escala e até mesmo desse eixo, abordando realidades específicas e projetos muitas vezes autônomos, de interesse restrito. Inclusive os assuntos relacionados à educação tem um fórum próprio, o chamado Fórum Mundial de Educação. Nestes espaços, a crise econômica é apenas cenário, os debates cercam e buscam outros limites. Mas, de fato, é nesses espaços onde se pode encontrar as melhores respostas formuladas nos grandes debates altermundistas, onde brilham as grandes estrelas do evento e pisca o maior número de flashes.
No dia 26, foi a vez da presidenta Dilma Rousseff, ladeada pelo governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, afirmar, contra a expectativa geral, que a Conferência Rio+20 será um momento de “renovação de ideias”. Ao contrário da presidente, mesmo os principais ideólogos do fórum, assim como a maior parte das entidades ambientalistas presentes, tem uma visão pessimista da conferência. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, figura presente no fórum desde a primeira edição, em 2001, assegura que a pedra de toque da conferência, a assim chamada “economia verde”, não é mais do que uma nova “afirmação do capitalismo”. Assim como ele, organizações ambientalistas são pessimistas com a conferência, articulam no fórum a Cúpula dos Povose denunciam, como o Greenpeace, que muitas organizações e movimentos estão presos às agendas de empresas poluidoras e dos governos, comprometendo a liberdade e autonomia dos debates.
Altermundismo real
Em encontro fechado com o Comitê Internacional do Fórum Social Mundial, no mesmo dia 26, declarando que “nenhum governo debaterá uma alternativa anticapitalista”, a presidenta Dilma deu a resposta governamental, e de seu partido, à própria questão que se coloca diante dos participantes do fórum: “sair do capitalismo”. Assim como parece evidente que ninguém presente em Porto Alegre espera “sair” do capitalismo como quem muda de sala, também resta evidente que o governo brasileiro e aqueles que o sustentam estão muito cientes de que o modelo presente é como um poço sem fundo, ou um beco sem saída, e temas insurgentes, que mobilizaram as pessoas durante todo o ano de 2011, como a construção de Belo Monte e aprovação do novo Código Florestal tem aí lugar garantindo, operando o governo federal a despeito do desejo dos movimentos sociais e sob o critério de forças políticas que jamais frequentaram o Fórum Social Mundial, mas que ordenam a seu modo a política nacional.
O cenário de contradição, entretanto, não impediu que cerca de 1.500 pessoas participassem, no dia 28, da assembleia dos movimentos sociais e definissem os eixos de um documento final capaz de aglutinar uma agenda comum de ações, centradas em questões como a democratização da comunicação, a violência contra as mulheres, o desenvolvimento sustentável, a reforma agrária, a agricultura familiar, o trabalho decente, educação e saúde de qualidade, entre outras. Assim como não tem sido tarefa simples localizar atividades programadas na geografia do fórum, ainda mais quando estão dispersas pela cidade, a tarefa de identificar se o Fórum Social Temático de 2012 continua indo de encontro ao centro do que se propõe, ou seja, o altermundismo real, ou se vem tomando outro tipo de direção não é menos complicada mas, por uma questão de coerência com sua trajetória nos últimos 10 anos, ainda necessária, tanto para aqueles que postulam desde seu centro como os que espalham-se na periferia de suas ramificações mais remotas.
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[Lucio Carvalho é coordenador-geral da revista digital Inclusive – inclusão e cidadaniae autor de Morphopolis]