A venda de armas leves no Brasil cresceu significativamente no final da última década. O número de unidades vendidas passou de 469.097 em 2005, para 831.616 em 2010, incluindo um pico de 1.001.549 em 2009. Isso só no mercado interno, onde, em todo o período, foram comercializadas 4.339.846 unidades. Se consideradas as 4.482.874 peças exportadas, a quantidade total de armas leves vendidas pela indústria nacional nesses cinco anos chega a 8.822.720. Armas leves são aquelas que podem ser carregadas por uma pessoa, como revólveres, pistolas, rifles e fuzis.
Até serem divulgados na série de reportagens que produzi recentemente para a Agência Pública, da qual participaram também as repórteres Natalia Viana e Jessica Mota, os números sobre a produção nacional eram inéditos. Os dados sobre a produção e demais informações apresentadas no material foram obtidos por meio de entrevistas, leituras e contatos feitos como parte de uma pesquisa de dois anos no curso de pós-graduação com especialização em jornalismo internacional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Tentar entender e acompanhar o setor é um desafio. Na busca por informações que deveriam ser públicas, sobram negativas, desinformação e falta de transparência.
É do governo federal a responsabilidade de fiscalizar, controlar e divulgar dados sobre a fabricação de armas, feita no Brasil por indústrias estatais e, principalmente, privadas. Questionados sobre a dimensão da produção das indústrias nacionais e sobre incentivos governamentais que têm sido decisivos para a expansão das linhas de montagem, os representantes do Ministério da Defesa responderam em nota que a pasta “não dispõe de elementos para responder a todas as questões” e sugeriram que a reportagem encaminhasse “as perguntas referentes à movimentação, produção, volume de vendas e receita da indústria de defesa às empresas do setor”, sugerindo que para “dados sistematizados sobre a indústria de defesa”, o melhor caminho seria procurar “a Fiesp [Federação das Indústrias de São Paulo], no Comdefesa [Comitê da Cadeia Produtiva da Indústria de Defesa], que costuma consolidar dados desse mercado”.
As empresas
Entrevistado por mais de uma hora, Jairo Cândido, o presidente doComdefesa, não deu pista alguma sobre o tamanho da produção – apesar de insistir na necessidade urgente de ampliação do financiamento público para as empresas, de isenções fiscais e de investimentos na compra da produção, tudo para garantir a “segurança nacional”. Frente à insistência em relação a dados mais sólidos para o embasamento da pesquisa acadêmica sobre o assunto, Cândido indicou o diretor-técnico da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde), Armando Lemos. Este, por sua vez, afirmou não existir um levantamento sobre a quantidade de armas fabricadas no país: “Ninguém sabe qual a dimensão da produção nacional. Buscamos incentivos fiscais para beneficiar os fabricantes, mas, sem números precisos, não dá nem para conversar com o Ministério da Fazenda. Não sabemos quanto é produzido, quantas pessoas trabalham no setor, quanto dinheiro é movimentado. Eu não sei, o [então] ministro [da Defesa Nelson] Jobim não sabe, ninguém sabe. As empresas relutam em repassar estes dados”
Os representantes das empresas também não se entusiasmaram em falar sobre a produção. A assessoria de imprensa da Taurus, maior fabricante e exportadora do país, informou, também por nota, que “nenhuma fabricante de armas divulga o seu volume de produção por questões de segurança. Por mais que essas companhias invistam em segurança, é difícil prever como uma informação dessas pode ser usada por pessoas com más intenções (tentativa de invasão às suas sedes, por exemplo)”. A empresa também não quis comentar as consequências da exportação de armas que as indústrias brasileiras fazem para alguns dos países mais pobres e instáveis do planeta. “Quanto às outras questões levantadas, por terem implicações políticas que não dizem respeito à Taurus, a Companhia não se pronuncia sob hipótese alguma [sic]”.
Nenhum dos empresários que controlam o setor quis dar entrevistas.
Desinformação
Não que seja fácil determinar quem manda na produção nacional de armas. Nem os principais estudiosos do assunto no Brasil sabem, por exemplo, quem são os donos da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), empresa que detém o monopólio da venda de munição no Brasil. No estudo “Armas Leves no Brasil: produção, comércio e proprietários”, os pesquisadores Pablo Dreyfuss, Benjamin Lessig e Julio Cesar Purcena conseguiram mapear que 70% das ações da CBC pertencem à DFV Participações, uma unidade da Cemisa, empresa controlada pela Charles Ltd., sediada nas Ilhas Virgens Britânicas. Outros 28% são da PCDI Participações, ligada à Brookmon Trading Corp., também com sede nas Ilhas Virgens. Não se sabe quem controla as duas empresas sediadas naquele paraíso fiscal.
De maneira nem sempre clara e direta, as indústrias mantêm uma rede bem articulada de representantes em diversas esferas legislativas, bem como na sociedade civil. O Movimento Viva Brasil (MVB), por exemplo, associação que costuma estar à frente de campanhas contra o desarmamento e pelo fim das restrições ao comércio de armas, tem ligações diretas com a CBC. Desde sua fundação, o MVB funcionou dentro do escritório de Marco Antonio Moura de Castro, um dos integrantes mais antigos do conselho de administração da Companhia Brasileira de Cartuchos (CBC), líder nacional em venda de munição. Apesar do vínculo, o MVB é regularmente considerado pela imprensa como uma associação independente que representa proprietários e simpatizantes de armas, e não uma associação que defende interesses das indústrias.
Presidente do MVB, Benedito Barbosa, o “professor Benê”, nega que seja esse o caso e insiste na legitimidade e na independência do trabalho realizado pela entidade. Sobre a coincidência no endereço, ele afirmou, por e-mail, que desconhecia o fato de que Moura de Castro faz parte do conselho da CBC. “Conheci o Mike na época que ele era presidente do Safari Club do Brasil, nem sei se ele já era ou se ainda é conselheiro da CBC. Ele sempre foi atirador e colecionador de armas e esse mundo é bastante pequeno. Dificilmente alguém não conhece alguém. Quando decidi fundar o MVB ele me ofereceu um sala em seu escritório. Sai de lá devendo mais de 10 mil reais em alugueis, que ele, por amizade, jamais cobrou”.
Ouvido regularmente como fonte isenta, Benedito Barbosa tem se destacado por posições extremas na defesa do direito à posse de armas. Em 2008, em um fórum sobre o assunto na internet, ele deu a seguinte resposta a atiradores que ridicularizavam a cor rosa de uma pistola da CBC: “Tudo é uma questão de nicho de mercado. A pistola com certeza se destina ao público infanto-juvenil, aliás são estes que serão os atiradores de amanhã. Então, é realmente necessário que esse tipo de arma esteja disponível no mercado ou você daria uma x-ultra-multi-veloz e cara arma para o seu filho de oito anos atirar livremente? Aliás, até que enfim, a indústria nacional lembrou que existe mercado para novos atiradores”.
(Des)Controle
Na resposta ao questionamento inicial, o Ministério da Defesa garantiu monitorar a produção nacional, apesar de não informar a quantidade de armas produzida. “O Ministério da Defesa tem controle da produção, mas não sabe, a priori, o tamanho das encomendas feitas. O Ministério acompanha as produções entregues por meio do Comando do Exército (Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados – DFPC)”, afirmaram os assessores em nota, com o cuidado de ressaltar que “a título de esclarecimento, o Ministério da Defesa incentiva fortalecer a Indústria Nacional de Defesa, e não ‘ampliar a produção nacional de armas’”.
A Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados (DFPC) do Exército é um setor em que público e privado costumam se confundir e também não é famosa por ser transparente. O caso mais emblemático é o do general Antônio Roberto Nogueira Terra, que durante seis anos foi o responsável por fiscalizar as empresas e, após esse período, trocou o uniforme por um cargo de consultor especial da Sulbras Consultoria e Assessoria Ltda, escritório de representação da Taurus em Brasília que pertence a Renato Conill, vice-presidente da empresa – mudança de emprego destacada em reportagem na revista IstoÉ, em 2004.
Mesmo com a negativa do Ministério da Defesa, a reportagem entrou em contato com o Exército para tentar ouvir os responsáveis por monitorar o setor. Nenhuma entrevista foi concedida. Após insistência, os representantes do órgão enviaram um levantamento parcial sobre a produção. Nem todas as informações solicitadas foram disponibilizadas. Não foi informado, por exemplo, a quantidade de armas exportadas ano a ano e nem os países aos quais foram enviadas as remessas. A reportagem indicou o departamento que detém tais informações, mas, mesmo assim, nenhum dado foi enviado. Desde outubro de 2010, o Sistema de Gerenciamento de Banco de Dados de Exportação de Produtos de Defesa (Sgeprode), organizado pela Divisão de Tecnologia da Informação (Divti) da Secretaria de Organização Institucional (Seori) do Ministério da Defesa, monitora as transferências. Após o anúncio oficial da criação do órgão, nenhuma outra informação sobre o sistema foi disponibilizada ao público.
Os dados apresentados ainda são poucos, mas ajudam a ter uma ideia sobre a dimensão e força política e estratégica da indústria de armas nacional. Não se trata de ser contra ou a favor de armas, de restrições ao comércio, da posse, uso ou desarmamento, mas de poder fazer um debate qualificado, com dados objetivos, que indiquem a posição e o papel que o Brasil tem exercido na produção e no comércio de armas – dentro das fronteiras e fora delas.
Os tempos mudaram no país e democracia implica a difusão de informações, debates e participação da sociedade até mesmo nas políticas que envolvem a segurança e a defesa do país.
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[Daniel Santini é jornalista e editor da Agência de Notícias da ONG Repórter Brasil; mantém o Outras Vias, um blog sobre mobilidade urbana e bicicletas no portal de jornalismo ambiental ((o)) eco]