Por mais que as “tecnologia tudo” tenham evoluído um bocado, para repórteres o aparelho telefônico ainda é instrumento fundamental para o trabalho.
Muito do que a gente precisa para construir uma reportagem se consegue a partir de uma ligação. As “internets” ajudaram bastante, mas tem situações em que só o aparelho do seu Gharam Bell resolve.
Dito isso, digam pro tio, como um jornalista pode ser surdo? “Ah, tio, se for surdão total, acho quase impossível, viu”…
Mas não é… e tô vivo para servir de prova disso.. mas bora lá explicar melhor a história.
Escutar apenas 25% do que os mortais comuns ouvem já é pra deixar o brasileiro em uma situação parecida com a velhinha da Praça é Nossa, lembram?
Pois foi justamente com essa condição que recebi na redação da Folha de S.Paulo o José Petrola, um repórter que subverte qualquer lugar comum que se projete sobre um “repórter surdo”.
Pergunte, pense
O Zé começou aqui no jornal como trainee, no ano passado. Quando nos trombamos pelos corredores do “trampo”, ele me cumprimentou, disse que era meu leitor, massageou meu ego, mas eu não reparei nada, nada de diferente nele, apenas que falava um pouco mais baixo…
Só depois de um tempo que fui descobrir que o Petrola, formado na USP, fã de radiojornalsimo (só para ser um pouco mais do contra) e quase concluindo, em grande estilo, um mestrado, era prejudicado dos ouvidos…
Neste comecinho do ano, o Petrola me pediu uma oportunidade de quebrar pedra comigo. E não é que, no mesmo dia que nos falamos, rolou uma vaga?! Não pensei duas vezes e o indiquei para ajudar na equipe.
Eu, sinceramente, não sabia como ele faria, mas se ele se prontificou a trabalhar, algum jeito ele daria. E ele deu e mostrou que é um repórter como outro qualquer…
Acho essa dica fundamental: antes de lançar conceitos de habilidades sobre as pessoas com deficiência, seja ela qual for, conheça, pergunte, saiba… não julgue, não ache, não coloque as suas inabilidades na ficha do outro….
O resto é o Zé Petrola quem conta… e explica! Ah, em tempo, quem quiser conhecer as dicas para não pagar mico com um surdo, clique aqui.
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Não desista dos seus sonhos
José Petrola
Tenho perda auditiva de 75% nos dois ouvidos. Isto significa que, para escutar, preciso de dois aparelhos, um em cada ouvido. Desde que eu tinha um ano e meio faço uso deles e consegui aprender a falar com o apoio da família e o acompanhamento de uma fonoaudióloga.
Graças a isto, entrei para o time dos surdos oralizados – aqueles que, com a ajuda de aparelhos auditivos, falam em português e não precisam da língua de sinais. (Do tio, aqueles que a Lak e a Sô Ramires vivem batalhado pelo reconhecimento. Para saber mais, clique aqui).
Gente como eu escuta normalmente e só tem dificuldade em situações como falar ao telefone, conversar em lugares barulhentos ou assistir a filmes dublados.
Foi assim que consegui estudar sempre em escolas normais, junto com as outras crianças. E, graças ao apoio da família e várias oportunidades, consegui me formar em jornalismo na USP.
Ano passado, participei do programa de trainees da Folha. Para quem não conhece, é um curso muito legal que forma jornalistas para trabalhar na redação.
Em janeiro, trabalhei na Agência Folha, com o Jairo Marques, fazendo apuração à distância de notícias que ocorrem fora de São Paulo.
Agora vocês devem estar se perguntando: como assim, repórter surdo? E ainda por cima fazendo a apuração das matérias pelo telefone?
Para começar, os aparelhos auditivos têm uma programação especial para usar no telefone.
Antes de fazer ou atender uma ligação, aperto um botão que aumenta o volume. Assim fica mais fácil usar o aparelho e eu consigo até entrevistar aquele político lá do Amazonas que precisa ser ouvido para a minha matéria no jornal.
Segundo, existe um transmissor FM que funciona como uma espécie de “fone de ouvido sem fio” para os aparelhos. Se eu gravo uma entrevista e quero ouvir a transcrição, basta conectar o transmissor no gravador.
É como aqueles fones Bluetooth que algumas pessoas usam para atender o celular dirigindo. Também uso para ouvir música quando estou de folga.
Quando escolhi o jornalismo, muitos me falaram que era uma profissão impossível. Mas eu não sou de ficar parado e nem vejo a surdez como obstáculo.
É verdade que de vez em quando passo uns perrengues, mas nada que me impeça de trabalhar.
Qual é o meu recado? Primeiro: nem todo surdo precisa de Libras! Há muitos surdos oralizados, que falam e ouvem em português com a ajuda de implantes ou de aparelhos auditivos.
E fica aí o meu último recado: deficiência não pode ser motivo para ninguém desistir de seus sonhos! Precisamos, sim, botar a boca no trombone pelos nossos direitos.
Sei que muita gente não teve as mesmas oportunidades que eu. Aparelhos auditivos são caros e a manutenção é complicada (mas isto já seria tema para outro post).
Também há muitas escolas que ainda resistem a ter um surdo oralizado como aluno. E é por isso que estamos aqui brigando por um mundo mais inclusivo.