“Uma nova categoria política irrompeu neste país, com algum estrondo mediático, no último fim-de-semana: os ‘cavaquistas anónimos’. Têm opiniões fortes e serão influentes, como atesta o facto de a repercussão das suas teses e propostas — dadas a conhecer com grande destaque neste jornal — ter marcado a actualidade nos dias subsequentes. Condenam a actuação do governo em funções e passam a mensagem de que é essa, também, a posição do Presidente da República. Não se sabe é quem são, o que torna inviável confrontá-los com as ideias que defendem. Políticos, politólogos e comentadores andaram a discutir, nos últimos dias, a mensagem de ‘personalidades’ sem rosto.
Muito se discutiu, também — e é disso que devo ocupar-me neste espaço —, a legitimidade de a imprensa se servir de fontes anónimas para lançar no espaço público, como facto incontroverso, o que nas páginas do PÚBLICO foi definido como uma aceleração da ‘rota de colisão’ entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. Numerosos leitores criticaram com veemência essa opção editorial. Uma mensagem assinada por Manuel Vaz resume as questões colocadas: ‘Pode (…) uma notícia falar em ‘personalidades do cavaquismo’ sem indicar uma única personalidade? Pode um comentário político fundar um título de primeira página, ainda assim forçado?’.
Recordem-se os factos. No último domingo, o PÚBLICO anunciou em título principal na capa: ‘Cavaquistas querem que Vítor Gaspar saia [do Governo]’. A afirmação era sustentada numa peça em que a jornalista São José Almeida garantia que ‘é absoluta a discordância de algumas das mais proeminentes personalidades do cavaquismo e do próprio Presidente da República sobre a condução da política orçamental (…) pelo Governo’ e acrescentava saber que,’entre essas personalidades que apoiam Cavaco Silva, há quem defenda já que o Governo deve substituir o ministro das Finanças’.
Na segunda-feira, a Presidência da República veio desmentir publicamente as ‘notícias’ que ‘tentam envolver o Presidente’ em ‘interpretações especulativas sobre o relacionamento entre órgãos de soberania’, assegurando que ‘não têm fundamento’ (em causa estava, para além da peça do PÚBLICO, uma notícia do Expresso que referia uma ‘divisão profunda entre São Bento e Belém’). Um dia depois, o PÚBLICOfez saber que mantinha o teor da notícia que publicara, explicando que as suas fontes tinham sido ‘personalidades próximas de Cavaco Silva que falaram sob anonimato’. E lançava um inquérito na edição on line, perguntando aos leitores: ‘Acha que Vítor Gaspar deve demitir-se depois das críticas de apoiantes de Cavaco Silva à política que consideram ser ultraliberal do ministro das Finanças?’.
Confrontei a autora da peça da edição de domingo — bem como a directora do jornal, Bárbara Reis, e a editora de Política, Leonete Botelho — com as críticas dos leitores. Perguntei, nomeadamente, ‘por que é que as informações e opiniões relatadas na notícia não são atribuídas a qualquer fonte identificada’. As respostas não esclarecem propriamente, a meu ver, essa questão concreta. São José Almeida diz considerar ‘sagrado’ o ‘anonimato das fontes’ e ‘absolutamente legítimo’ o ‘jornalismo com fontes anónimas’, podendo concluir-se que vê como ‘normal’ a não identificação das fontes referidas no texto que assinou. Bárbara Reis e Leonete Botelho explicam que a fórmula ‘proeminentes cavaquistas’ foi usada ‘para concretizar ao máximo a que tipo de fontes se referia a notícia, sem quebrar o exigido anonimato’, e ‘porque é exactamente isso que estas fontes são: figuras de topo daquilo a que em gíria jornalística se chama ‘cavaquismo’, pessoas próximas de Cavaco Silva tanto no passado como no presente’.
Os leitores ficam assim a saber que o anonimato foi ‘exigido’ pelas fontes. Mas não ficam a saber por que motivo o PÚBLICO aceitou a exigência. A directora e a editora invocam uma norma do Livro de Estilo do jornal, segundo a qual, ‘quando o jornalista está em condições de assumir a informação – isto é, quando a confirmou junto de várias fontes independentes entre si, embora todas tenham exigido anonimato – deverá noticiá-la (…) sem necessidade de recorrer às (…) desacreditadas fórmulas do género ‘fonte digna de crédito’, ‘fonte segura’ ou ‘fonte próxima de’.’
Esta norma, contudo, não deve ser lida como um incentivo à aceitação do anonimato. O que ela diz, em referência às situações excepcionais em que será lícito recorrer a fontes não identificadas, é que o jornal deve assumir a sua própria responsabilidade pela veracidade do que publica, sem recurso a muletas destituídas de valor informativo. Trata-se, por outro lado, de uma norma que não deve ser considerada isoladamente. O mesmo Livro de Estilo prescreve que ‘a recusa de identificação de uma fonte sem justificação plausível não é aceitável’, desaconselhando claramente a aceitação do anonimato em matérias ‘em que a fonte nada tem a temer’.
É preciso frisar que a protecção das fontes — que deve ser ‘sagrada’, sim, para qualquer jornalista honrado — não foi criada para servir o jornalismo que noticia a evolução do jogo político numa democracia. Ela existe para proteger a integridade e a liberdade das fontes que tornam possível à imprensa dar a conhecer à opinião pública casos de abuso de poder e outras situações merecedoras de reprovação social ou alarme público, que de outra forma permaneceriam ocultas por interesse de um qualquer poder — político ou não, grande ou pequeno, público ou privado, mas capaz de exercer represálias significativas sobre quem divulga a informação.
É esse o seu sentido, e não o de esconder a cara de quem quer participar ou influir no combate político democrático. Que terríveis represálias têm afinal a temer os ‘cavaquistas anónimos’, para mais ‘proeminentes’, e dotados de ‘conhecimentos e reflexão precisamente na área económica, quando não mesmo em finanças públicas’, que os impeçam de assumir as suas opiniões, aliás partilhadas por muitos outros portugueses, contra uma política que consideram que ‘vai conduzir (…) à destruição da classe média’? Todos poderemos imaginar o que os leva a acobertarem-se no anonimato, desrespeitando a ética do debate democrático e a sua própria liberdade cívica. Não serão motivos que o PÚBLICO deva acolher nem comportamentos que deva estimular. Especialmente o PÚBLICO, que a propósito da recusa de identificação das fontes ‘sem justificação plausível’, assumiu o compromisso, no contrato com os seus leitores, de contribuir para mudar ‘hábitos instalados’ neste domínio.
Significa isto que não pode haver lugar, no jornalismo político, ao recurso a fontes anónimas? Não necessariamente. São as regras que podem ser definidas, não as excepções. A regra em que se funda a confiança dos leitores obriga a evitar a banalização do recurso ao anonimato. De cada vez que o faça, o jornal estará a pôr em jogo a sua credibilidade. Por isso, as decisões a tomar face a um conflito de valores, em que de um lado pese a defesa desse património fundamental de um jornal que é a sua credibilidade, e do outro a relevância de uma informação de inquestionável interesse público, são das obrigações mais exigentes que qualquer responsável editorial tem de enfrentar. É pela qualidade desses juízos que se pode avaliar — não num único caso, mas de forma continuada — a confiança que deve ser depositada num órgão de informação.
O PÚBLICO é para muita gente, leitores habituais ou não, um jornal de referência. São José Almeida é uma jornalista experiente e respeitada. Mereciam as ‘revelações’ dos ‘cavaquistas anónimos’ que jornal e jornalista corressem o risco de ver afectada a sua credibilidade, como inevitavelmente acontece em casos como este? Com os dados que tenho, julgo que não. Mas esse é um julgamento que deverá ser feito por cada leitor, e que o tempo geralmente ajuda a clarificar.
Não está em causa a relevância noticiosa do alegado distanciamento de personalidades ligadas a Cavaco Silva face à agenda ideológica ou às políticas promovidas pelo governo de Passos Coelho. No que respeita ao próprio Presidente, são aliás conhecidas, através de declarações públicas, as suas reservas. Um jornalista bem informado tem à sua disposição, no PÚBLICO, espaços de análise onde pode articular e dar a conhecer aos leitores, com utilidade, a sua interpretação dos factos e indícios de que dispõe para qualificar a amplitude desse distanciamento.
A substância da manchete de domingo passado aconselharia a opção por um texto desse tipo. O que foi apresentado como notícia (e notícia principal do dia), é afinal o relato dos estados de alma de uns quantos anónimos — cujas opiniões o leitor comum não poderá, por isso mesmo, saber que peso têm — e uma síntese de informações de contexto. O que sobra como novidade informativa é a afirmação (‘O PÚBLICOsabe…’) de que gente próxima de Cavaco quer ver afastado o ministro das Finanças. Estando todo o texto construído de modo a sugerir uma identidade entre as posições do Presidente e as dos seus ignotos apoiantes, esperar-se-ia que um dado dessa importância fosse sustentado em factos comprováveis.
O futuro dirá talvez se o que se leu na manchete não passa, como é legítimo supor, de uma mera opinião (ou recado com vista a obter efeitos políticos), entre outras recolhidas no bizarro mundo dos ‘cavaquistas anónimos’. Se assim for, nunca o título escolhido deveria ter surgido a encabeçar a mancha informativa do jornal. Para o bom jornalismo, ‘uma fonte anónima não tem opinião’. Dizem as normas deontológicas do PÚBLICO (e aqui não há lugar a excepções) que o jornal ‘só reproduz opiniões que forem atribuíveis a fontes claramente identificadas’. O caminho contrário seria o da perda de credibilidade — que demora a construir mas pode perder-se num instante.”