Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Google usa navegador da Apple para espionar usuários

A reportagem do Wall Street Journal (16/02) sobre as alterações que os engenheiros do Google fizeram na segurança do navegador da Apple deixou a companhia de Brim e Palmers em contradição com seu próprio lema: “Don’t be evil”, que significa algo como não seja mau, ou malicioso. O gigante das buscas da internet foi pego em flagrante pela reportagem a bloquear as configurações especiais de segurança do Safari, o navegador da Apple, que faziam dele um dos mais seguros na web. A notícia espalhou-se rapidamente pela imprensa deixando a empresa numa situação difícil: foi flagrada no ato de violar a privacidade online dos usuários e retirou o código espião de circulação desde que fato vazou para a imprensa. O que despertou ainda mais o interesse da mídia.

No dia seguinte, a empresa respondeu, numa declaração publicada também no Wall Street Journal, que “o jornal descaracterizou o que aconteceu porque nós usamos a conhecida funcionalidade do Safari para prover recursos que usuários registrados do Google tenham habilitado. É importante advertir que esses cookies de anunciantes não coletam informação pessoal” (cookies são minisoftwares em forma de texto, que são plantados em um navegador para tracejar hábitos e gostos de usuários da web).

Mas por que deveríamos acreditar no Google, que já mentiu uma vez e deixou o navegador da Apple vulnerável aos espiões colocados nos browsers dos internautas por engenheiros do Google para beneficiar os anunciantes parceiros do gigante das buscas na web? O site da Globo G1 (17/02) contatou o Google e obteve uma explicação mais ampliada da empresa. A companhia declarou ao jornal online que havia explorado algumas características do navegador da Apple. Para habilitar recursos dos usuários do Google, criou uma “comunicação temporária” entre o Safari e os servidores do Google. Mas este link “provisório” foi criado para tornar as ligações entre os dois anônimas. “Entretanto”, diz o comunicado do Google, “o Safari contém uma funcionalidade que então habilitou outros cookies de publicidade do Google dentro do próprio navegador. Nós não antevimos que isso poderia acontecer e agora começamos a remover esses cookies de publicidade do Safari. É importante frisar que, assim como em qualquer outro navegador, esses cookies de publicidade não coletam informações pessoais.”

Segurança, privacidade e proteção de dados

Eles alteraram configurações de segurança padrão do browser da Apple e ainda tentaram passar a culpa para ela e seu navegador. É muita desfaçatez. Talvez, se ele não fosse tão seguro assim, os engenheiros espiões do supermotor de buscas não teriam que se dar o trabalho de introduzir um código espião no navegador… O Safari ainda é um navegador relativamente pouco usado. Na web, apenas 6% dos navegantes o usa. Mas nas conexões móveis das pequenas mídias digitais, 50% dos usuários utilizam o navegador da Apple, informou a Wired, no mesmo dia.

A CNN (17/02) e a revista tecnológica Wired, no mesmo dia, requentaram a notícia. Apontaram para a fonte original do Wall Street Journal e apresentaram reportagens sem novidades. Chamou minha atenção a malandragem do Google ter passado despercebida pelas maiores revistas especializadas em tecnologia, como a Wired, a Tech Crunch e outras. O velho jornalão chegou à frente e fez a melhor e mais completa cobertura. O periódico explicou a gênese da denúncia: o professor de Stanford Jonathan Mayer descobriu o código do Google, que foi confirmado, de forma independente, pelo consultor técnico do jornal, Ashkan Soltani, que descobriucookies espiões onde não deveriam estar. Soltani testou mais de 100 sites importantes e encontrou o código nos anúncios de quase todos eles. O Google não quis discutir o assunto com a imprensa.

O jornal também apontou para a conjuntura atual em tecnologia de informação. A segurança, a privacidade e a proteção de dados estão no centro do debate. A União Europeia pediu ao Google que “esperasse” que os países membros preparassem seus usuários para a nova reforma da privacidade do Google, que já foi advertido pela Federação Federal de comércio, ano passado, a não “deturpar” suas práticas de privacidade sob pena de multa.

O vencedor leva tudo

Outra tendência dominante no setor é a comercialização de dados de usuários. Muitas companhias oferecem serviços “gratuitos” e retiram seus lucros de anúncios online que são customizados através do registro individual dos usuários. Essas companhias, explicou o jornal, “competem por publicidade, em parte baseadas na qualidade da informação que possuem dos usuários”. Mas o maior feito da reportagem do jornal foi ter desvendado o mecanismo usado pelo Google para neutralizar as defesas do Safari. O navegador da Apple, por padrão, bloqueia cookies de terceiros, mas faz uma exceção para sites que o usuário interaja de alguma forma, ao preencher um formulário ou questionário, por exemplo, ou verificar seu e-mail. Neste momento, o navegador da Apple fica vulnerável e o Google pôde, então, introduzir seu código nos anúncios porque o navegador agiu como se os usuários estivessem a enviar dados invisíveis ao Google, abrindo as portas para a colocação de cookies espiões.

O Google, na realidade, está a lutar uma guerra que não tem como ganhar com o Facebook que, no campo da identidade virtual, parece não ter mais concorrente. E o Google tem apenas reagido às inovações bem-sucedidas da firma de Zuckerberg. Sem sucesso. Os engenheiros no maior motor de buscas da web tentaram uma jogada suja e foram pegos por um professor universitário e um jornal tradicional. Mas, como seu concorrente maior, preferiu fugir às suas responsabilidades e jogar a culpa na vítima das espionagens, o navegador da Apple, a qual prometeu rever as condições de segurança do programa.

A guerra da megaplataformas continua. Passa por cima das leis, da decência, da ética e dos direitos a privacidade online dos usuários. Tudo em nome da vitória final. A economia americana conta com suas grandes companhias tecnologia de informação, como o Facebook, a Apple, o Google e a Amazon: “as quatro grandes da web”, segundo Eric Schmidt, ex-CEO do Google. Enquanto o resto da economia afunda, essas empresas continuam a crescer a passos largos e passaram a ter uma importância econômica e estratégica enorme para a economia americana. Que agradece olhando para o outro lado para as imprudências e abusos dessas empresas. Elas são o último bastião bem-sucedido da economia americana no século 21, mas ameaçam desabar diante da competição implacável que poderá levar a um colapso no setor: as companhias estão envolvidas num tipo de competição desconhecido para os padrões convencionais da sociedade industrial.

Acabou-se o tempo das “vantagens comparativas” que garantia um lugar para cada competidor nos cenários econômicos, em todos os níveis. Entramos na impiedosa era das vantagens competitivas, um jogo onde o vencedor leva tudo, não há mais nenhuma regra que não possa ser quebrada e, sobretudo, não há lugar para perdedores.

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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]