A morte de dois jornalistas ocidentais, Mary Colvin e Rémi Ochlic, no bairro dissidente de Baba Amr, em Homs, Síria, na quarta-feira (22/2), lançou os olhos do mundo sobre esta cidade que é a capital da província do mesmo nome e faz fronteira com o Líbano, ao norte, e com a Jordânia e o Iraque, ao sul. O fogo de artilharia pesada continua sem cessar sobre a cidade revoltada. O mundo assiste ao massacre indeciso entre os “corredores de fuga” (sugestão dos franceses) para os sitiados, sem fazer nada e esperar, ou aceitar a argumentação pró-Bashar Al-Assad da Rússia e da China, que não aceitam de forma alguma a intervenção militar no país árabe.
A China teme qualquer revolta muçulmana porque receia as repercussões no Sinkiang, predominantemente islâmico e povoado por etnias de origem turca. A Rússia teme a queda do partido socialista Baath, a autocracia laica que controla o país desde 1963. Os russos acreditam que o partido é o último bastião das ideias seculares no mundo árabe. Na realidade, é um resquício do pan-arabismo leigo de Gamal Abdel Nasser que se transformou numa organização assassina.
Quem quiser saber mais sobre o partido Baath deve ler o livro O Espião de Damasco: o caso de Eli Cohen (Editora Artenova, 1971). É uma história real que mostra os bastidores íntimos do partido nos anos 1960: um conjunto de oficiais das forças armadas, profissionais liberais, comerciantes ricos e autoridades públicas oriundas das mais diversas etnias, religiões e tribos do país, que impunham uma unidade autoritária ao país. Acima de todos estava a cúpula militar com os comandantes das forças armadas do país. O partido seguiu a doutrina do pan-arabismo de Nasser em seu início, mas degenerou em ditaduras cruéis em alguns países árabes de maioria sunita. A revolta no mundo árabe é uma rebelião sunita.
O coração do perigo
Cohen, que nasceu no Egito, era filho de pais sírios. Viveu parte de sua vida no Cairo, falava fluentemente o árabe e tinha uma compleição semita, o que fazia dele o perfeito espião. Cohen conseguiu infiltrar-se no partido e atingir altos postos, fazendo-se passar por imigrante argentino bem-sucedido de origem síria. Seu diário tenso, presente no livro, mostra a aflição da luta subterrânea contra um regime que atua como um comitê executivo de execuções dos opositores. A coalizão autoritária manteve a união do país por décadas por meio do terror. Hafez Al-Assad, pai do atual presidente, em 1982 ordenou o massacre de xiitas rebelados na cidade de Hama. Eli Cohen foi descoberto e enforcado em 1965, sem direito a defesa.
A Autoridade Geral de Rádio e TV da Síria negou conhecimento de qualquer repórter estrangeiro no país (ver “Ministro Sírio diz não saber dos jornalistas mortos“, 22/2). O governo sírio declarou, diante do mundo, que “governos ocidentais estão a infiltrar jornalistas na Síria e é deles a responsabilidade pela segurança de seus cidadãos, não do governo sírio”. Mas seus corpos ficaram lá, no chão do apartamento transformado em centro de notícias em Baba Amr, o bairro rebelde a oeste de Homs. Quem está lá dentro é inimigo das forças do tirano sírio e alvo para as peças de artilharia. Definitivamente, não foi uma boa ideia instalar um centro de comunicações ao alcance das armas de longo alcance dos opressores sírios, no bairro mais quente da revolta.
A Agência France Presse (22/2) apresentou uma excelente reportagem sobre a vida e morte de Mary Colvin e Rémi Ochlik (ver “Rémy Ochlik e Mary Colvin, jornalistas vítimas da violência na Síria“). A primeira, de 56 anos, era veterana de velhos combates. Levava no corpo a marca das batalhas que cobriu, do perigo com o qual convivia serenamente: um tapa-olho no lado esquerdo do rosto, resultado de um ferimento por estilhaço no Sri Lanka, em 2001. Era repórter do conservador Sunday Times. Vinha cobrindo conflitos ao redor do mundo desde os anos 1970. Envolvida seriamente em expor os horrores do Homs ao mundo, seu compromisso extremo a levou “ao coração do perigo”, anotou a AFP. Nasceu nos Estados Unidos e viveu em Londres, sempre trabalhando em regiões conflagradas. Era consciente dos perigos da profissão. Sabia que a mídia há muito já se havia se tornado o alvo principal em conflitos violentos.
Horror em tempo real
Já Rémi apresentava o gosto pelo perigo característico dos jovens, sobretudo os desta geração viciada em adrenalina. Gostava de estar presente nos locais mais perigosos. Um amigo meu costuma dizer que “quando jovens, somos todos superpotências”. Concordo com ele. O jovem gostava de desafiar o perigo. “A guerra é pior que uma droga”, dizia o rapaz, aos 20 anos, jornalista premiado (ganhou o “World Photo” de 2012) por suas reportagens na Líbia. Foi também cofundador da agência IP3 Press, em 2005. Cobriu todos os conflitos recentes no mundo árabe. Tinha apenas 28 anos quando o fogo pesado da artilharia síria o levou deste mundo.
Mas a trágica quarta-feira não levou apenas os dois repórteres ocidentais. O jornalismo-cidadão, o verdadeiro herói das ruas de Homs, também sofreu uma baixa irreparável: o grande da Síria, o rei das coberturas impossíveis, o “Syria Pioneer” (O Pioneiro da Síria) também caiu vítima do fogo das tropas de Bashar Al-Assad. Foi atingido por fogo de morteiro enquanto socorria vítimas do massacre. Seu nome era Rami Ahmad Al-Sayed. Tinha 27 anos de idade, mas já havia postado mais de 200 filmes na plataforma Bambuzer (que foi bloqueada semana passada).
A TechCrunch(22/2) publicou uma homenagem póstuma a ele que ficou um pouco prejudicada pelo marketing disfarçado da plataforma de filmes que Al Sayed usava para divulgar as cenas dos horrores de Homs (ver “As Journalists And Video Bloggers Are Killed, SyriaPioneer Lives On“). Ao contrário dos outros dois, o sírio não tinha prêmios nem trajetória jornalística. Mas seu trabalho foi da maior importância para a exposição dos horrores de Homs ao mundo, apontou a TechCrunch:
“Sua cobertura do bombardeio de Homs foi ao ar por todo o mundo pela BBC, Sky News, Al-Jazira e muitas outras emissoras. Vídeos em tempo real do telhado onde Ramid e seus amigos posicionaram sua câmera foram transmitidos por todo o mundo.”
“A manchete humilha a catástrofe”
Al Sayed foi o que o seu nome de guerra anunciava: o pioneiro da Síria, o desbravador da catástrofe, o homem que abriu caminhos. Há tempos ele estava estava na mira do Estado. Por algumas vezes, escapou de tentativas de assassinato pelas mãos dos asseclas de Assad. Estava marcado para morrer mas, destemido, continuou seu trabalho. Suas últimas palavras foram amargas e expressam o espanto e o desconsolo de um homem que vê seu país aos pedaços, diante de um mundo impassível:
“Baba Amr enfrenta o genocídio agora. Eu nunca perdoarei vosso silêncio. Vocês nos dão palavras, mas nós precisamos de ação. Entretanto, nossos corações sempre estarão com aqueles que arriscam suas vidas pela liberdade. Eu sei o que precisamos! Precisamos de campanhas dentro e fora da Síria, e agora nós precisamos de todas as pessoas nas portas das embaixadas por todo o mundo. Em poucas horas não haverá mais lugar chamado Baba Amr e eu espero que esta seja minha última mensagem pois ninguém esquecerá que vocês falaram mas não agiram.”
Seu discurso expressa a decepção com o Ocidente e com todos os que se omitem nesta hora triste para a Síria. Os dois jornalistas e o blogueiro ativista não devem ficar em nossas memórias apenas como corpos ensanguentados no chão de um país distante e do qual sabemos pouco. Nélson Rodrigues, em inesquecível entrevista a Geneton Moraes Netto, em 1974, comentou sobre “a desumanização da manchete”. É uma crônica que descreve situações em que a cobertura jornalística não está à altura dos fatos. “Onde o fato e sua cobertura parecem não ter conexão”, explicou nosso maior dramaturgo, “a manchete humilha a catástrofe.”
A marca do pioneiro
“A velha imprensa chorava com o leitor”, ensinava o jornalista. A atual transforma as maiores tragédias em eventos assépticos, que contemplamos de forma casual e corriqueira. A desumanização da manchete criou o espectador desumanizado, anestesiado. A desgraça alheia, mediada por palavras, fotos e filmagens espetaculares, afasta o necessário senso de tragédia. A dor é amortecida pela mídia, suas cores, anúncios e celebridades. E entre uma coisa e outra, os corpos ficam vergonhosamente no chão de cidades destruídas por guerras e massacres mundo afora. São fotografados, filmados e depois desaparecem na torrente ininterrupta das notícias.
Não podemos sucumbir a esta tendência e perder o senso do trágico, quando vivemos tragédias. O drama da Síria ainda não conseguiu mobilizar as massas mundiais. No Ocidente, vive-se em uma sociedade narcisista em que a felicidade é imposta a todos como valor imperativo. E este tipo de sociedade produz gente fraca. Que não ousa contemplar o mundo real onde vive.
Al Sayed foi um forte, criado numa sociedade que tem compromissos outros que a autocomplacência e a superficialidade polida do Ocidente. Não foi por acaso ou por glória que ele foi chamado de “Pioneiro da Síria”. Ele foi um dos primeiros a se apresentar para cobrir o massacre em Homs. Seus companheiros de luta reativaram sua conta para continuar a transmitir, em seu nome, todos os horrores que a Síria agora vive. Mas, acima de tudo, ele trazia a marca indelével do verdadeiro pioneiro: atrás dele virão muitos e muitos outros. E a miséria da Síria terá fim.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]