Vendo as imagens de jovens protestando contra ditaduras na Síria, no Iêmen e na praça Tahir, no coração do Cairo, eu me lembro, inelutavelmente, de Nasrin.
Eu a conheci em Teerã, em janeiro de 1979. Eu era um jovem repórter cobrindo a queda do xá para a TV Globo. Ela, uma universitária matriculada na Universidade de Teerã, fazendo um “freela” como nossa intérprete naqueles dias intensos, confusos e, quase sempre, surpreendentes.
Nasrin era uma entusiasta da revolução. Participava de uma organização estudantil que lutara contra a ditadura e acreditava que, finalmente, depois de décadas de opressão, seu povo estava livre. Eu admirava, ainda que com uma ponta de ceticismo, seu idealismo.
A ponta de ceticismo resultava, em parte, da monumental confusão que tomou conta de Teerã após a queda do xá. O regime de Pahlevi havia acabado, mas ninguém sabia quem assumiria o poder.
Nos dias seguintes à fuga do “Imperador do Trono do Pavão”, como o xá se autointitulava, milhares de jovens, a maioria vinda dos bairros ao sul da capital, invadiram bases do Exército, saquearam arsenais e se espalharam pela cidade, armados de fuzis. Caçavam inimigos da revolução, agentes da Savak, a polícia secreta da ditadura, e “demônios estrangeiros”, categoria bastante abrangente, que incluía qualquer europeu ou americano, cidadãos de países que haviam apoiado o xá.
Nossa equipe estava hospedada no Hotel Intercontinental, numa das principais avenidas do centro. Em cada esquina, grupos de jovens empunhando fuzis automáticos. Começavam a ser chamados de Guardas Revolucionários. Nem sinal da polícia ou do Exército. De dia, até que a cidade funcionava. Depois do anoitecer, valia tudo.
Tiroteios
Invariavelmente, a avenida em frente ao hotel era tomada por intensos tiroteios. Meu quarto dava para a avenida. Impossível dormir. Numa daquelas noites fiquei tão assustado com as rajadas de metralhadora que me vi debaixo da cama, tomado por emoções conflitantes: o alívio por estar protegido de balas perdidas e a vergonha de me ver naquela posição inusitada.
De manhã, comentei com Nasrin que era preocupante ver tantas armas nas mãos de jovens guardas da revolução. “Nada disso”, ela respondeu, “toda revolução passa por isso”.
Fomos à Qom, sede do clero xiita, para registrar a volta do aiatolá Khomeini, que estava exilado na França. Do topo de um prédio, assistimos a uma multidão de mais de 100 mil pessoas ocupando cada centímetro da praça principal. Depois de uma espera interminável, Khomeini entrou pela praça em carro aberto, acossado de todos os lados por seguidores que gesticulavam, gritavam, cantavam.
Lá de cima, a gente via que alguns eram esmagados e pisoteados pela multidão em transe. Até hoje, não se sabe ao certo quantos morreram naquela tarde. O frenesi da multidão expressava a adoração absoluta. Assistindo ao espetáculo impressionante, pensei que aquele culto extremado à personalidade não sinalizava a probabilidade de um novo regime democrático e pluralista.
Na viagem de volta a Teerã falei das minhas apreensões com Nasrin e ela rebateu, irredutível: “Você é estrangeiro, não entende o que está acontecendo. Esta é uma revolução popular, democrática e islâmica”.
Naqueles dias, ainda não estava claro o papel que o clero xiita exerceria no novo regime. Khomeini era o líder carismático e popular, mas outras facções e partidos laicos que haviam lutado contra o xá pleiteavam um lugar no governo. O primeiro líder do novo regime, Mehdi Bazargan, veio de um desses partidos.
Xador
Mas os milicianos que patrulhavam as esquinas eram seguidores do aiatolá e começavam a impor sua versão de novos costumes revolucionários. Interpelavam mulheres na rua, exigindo que cobrissem a cabeça com o xador, o véu islâmico. Muitas iranianas, principalmente profissionais liberais, estudantes e trabalhadoras, rejeitavam o uso do xador. Começaram a eclodir pela cidade pequenas manifestações contra as imposições dos milicianos.
A imprensa estrangeira, com acesso restrito aos bastidores da luta política para a formação do novo regime e sedenta por boas pautas, cobriu com vigor os protestos, que conquistaram espaço privilegiado nos telejornais de todo o mundo.
Dias depois, os jornalistas estrangeiros foram informados por representantes do governo de que no dia seguinte haveria manifestação a favor do uso do xador e que deveriam cobri-la. Os que não o fizessem seriam considerados hostis à revolução e corriam o risco de expulsão.
Apesar da ameaça, decidimos cobrir a manifestação. Foi inesquecível. Milhares de mulheres, trazidas de ônibus dos bairros populares, vestidas de negro da cabeça aos pés, cobriram as colinas em torno da sede da emissora de televisão estatal, no norte da capital. Era um dia lindo, e a imagem daquele mar de vestes negras iluminadas pelo entardecer ficou marcada. Mas o clima da manifestação era tenso.
Nasrin traduziu os discursos que atribuíam os protestos contra a obrigatoriedade do uso do xador à influência ocidental, com ênfase ao papel subversivo da imprensa. Milhares de milhares de vozes femininas gritavam palavras de ordem contra os “demônios estrangeiros”. Naquela hora, não havia distinção entre jornalistas de um país ou outro. Não fomos fisicamente agredidos, mas o clima não era bom, em especial quando passávamos por um dos pontos de controle com milicianos armados.
Estereótipos
Na volta ao hotel, não resisti e perguntei a Nasrin se ela não estava preocupada com o que vira. Ela riu e garantiu que não estava nada preocupada; tinha certeza de que jamais seria obrigada a se vestir de uma determinada maneira e que eu, como estrangeiro, continuava preso aos estereótipos ocidentais.
Nos dias seguintes, fomos repetidamente hostilizados nas ruas da cidade. Estava ficando mais perigoso cobrir as manifestações que tomavam a capital. De uma hora para outra, passávamos de espectadores a alvo. Éramos cercados por homens exaltados, gritando palavras de ordem contra estrangeiros, às vezes, empurrados e intimidados. Tive a certeza de que estávamos a ponto de apanhar. Pela primeira vez, vi Nasrin assustada.
Ela gritava que éramos brasileiros, mas ninguém prestava atenção. Tive a ideia de tirar do bolso o passaporte brasileiro e colocá-lo à frente, como um pequeno escudo protetor.
O efeito foi imediato; inicialmente, de perplexidade. Os manifestantes não entenderam o que eu estava fazendo. Mas, a seguir, quando identificaram o documento, uma transformação extraordinária. Passaram a sorrir e a repetir um nome que descobrimos ser capaz de abrir portas, corações e mentes em boa parte do mundo: “Pelé!”.
Refeitos do susto, salvos por sermos seguidores não do xá, mas do rei do futebol, reclamei com Nasrin; podíamos ter sido brutalmente espancados. A dinâmica das ruas estava tomando um rumo agressivo e aquilo, insisti, não estava me cheirando bem. Ela não deu o braço a torcer. Aquilo fora um incidente de percurso; depois de tanta luta contra o arbítrio não havia espaço para o retrocesso.
Uma semana depois, deixamos Teerã. Continuei acompanhando a revolução iraniana à distância; a deposição dos primeiros líderes civis, a marginalização dos partidos laicos e o crescente poder do clero. Com o tempo vieram informações sobre a imposição de costumes fundamentalistas, censura à imprensa, prisões e até a tortura daqueles que discordavam do regime.
Perdi contato com Nasrin, até que, anos depois, encontrei casualmente um jornalista britânico que também estivera em Teerã naqueles dias. Ele havia voltado várias vezes ao Irã e me contou que Nasrin fora detida e levada até a penitenciária de Evin. Não foi acusada de um crime, mas, depois de alguns meses, sua família foi informada que ela havia morrido na prisão, de “causas naturais”.
Agora, três décadas depois, vejo jovens protestando nas ruas de países árabes e me pergunto: será que lutarão para se verem livres de governos corruptos e autoritários, para assistir à instalação de novas ditaduras fundamentalistas, ou será, como dizia Nasrin, que sou um estrangeiro e não entendo a revolução?
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[Roberto Feith é diretor-geral da editora Objetiva]