Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Coalizão dos céus?

Um de meus queridos irmãos, aos seis anos de idade, sonhou que o pai havia se mudado para a casa do vizinho, logo a seguir incendiada, sem sobreviventes. Se todos os sonhos tivessem tal índice de opacidade, a psicanálise teria se tornado uma profissão inviável e A Interpretação dos Sonhos, de Freud, uma obra de ficção indecifrável. Afinal, tratou-se de um sonho que portava consigo mesmo a própria interpretação. Pois bem, vida que segue, a recentíssima nomeação do senador Crivella, prócer da liga evangélica, para o estratégico posto de ministro da Pesca, possui complexidade assemelhada à do sonho de meu irmão. Assim como há fatos que contêm sua própria metamorfose em piada, a nomeação clerical também traz consigo sua própria interpretação, de declinação tediosa.

Assim como o país não prescinde de um governo que “funcione”, o governo precisa de uma “base” segura para enfrentar a oposição e cumprir seu programa. Duas suposições, além da premissa-mãe de que o Brasil vive em estado permanente de oligofrenia cívica – são apresentadas como se auto-evidentes fossem, a de que governos são “mecanismos” que dispõem de “funcionamento regular”, e não resultado de escolhas e materializações de valores, e a de que há no país uma oposição política e parlamentar aguerrida, a ameaçar programas de governo, sem os quais o país colapsa. A pesca sob a égide evangélica é, pois, um esteio do bom governo e da normalidade nacional; feitas as contas, o governo pode “funcionar”. Não se contabiliza, contudo, no fabricar das salsichas, danos produzidos pelo próprio processo de obtenção de sustentabilidade sobre a efetividade e a qualidade do governo. A assim dita base aliada, em estado de irredenção latente, quando não em rebelião aberta, exige tanto precioso tempo para “articulação” quanto emprego ininterrupto de escolhas auto-interpretadas.

Estado desespiritualizado

Observadores técnicos da montagem de governos de coalizão dispõem-se sempre a apaziguar os espíritos. Sustentam que isto tudo é normal; que do Togo à Dinamarca, em não sei quantas séries históricas, ocorreram governos de coalizão nos quais a partilha do poder é condição para sossego legislativo por parte dos governantes. Tudo, portanto, é normal, e sempre há caos piores. Italo Svevo, em um pequeno e delicioso conto, descreveu diálogo havido entre infelizes usuários de um bonde que circulava próximo a Seveso, no norte da Itália, com atrasos e interrupções inacreditáveis. Quando o bonde, por fim, aparecia, sempre em ocasião e horário caprichosos, os passageiros comentavam entre si a respeito de notícias ainda piores sobre atrasos do expresso da Sibéria ou da linha marítima Génova-Nova York, com lapsos muito maiores. No fundo, era uma felicidade viajar no bonde de Seveso.

A arte da comparação, com frequência, dá azo à inveja, mas não raro proporciona também paz de espírito. O filósofo Hans Blumenberg, certa feita, usou em belo livro a expressão “espectador incólume”, inspirada em comentário de Michel de Montaigne que admitia não ser impossível usufruir de certa sensação de alívio na posição de espectador de uma calamidade: ao mesmo tempo que o sofrimento das vítimas produz empatia, de forma quase imediata faz sobrevir alívio por não ter estado na mesma condição. Diante do naufrágio alheio, pena e sentimentos sinceros pelo infortúnio e alívio pelo desfrute de incolumidade.

Michel de Montaigne vem bem a calhar. Coevo do massacre de São Bartolomeu, no qual a monarquia católica francesa mata, em 1572, dezenas de milhares de huguenotes, Montaigne foi um dos primeiros a indicar o horror da religião de Estado. Outros, como Paolo Sarpi e Pierre Bayle, serão, no século 17, ainda mais radicais: uma república de ateus é não só viável, mas pode ser uma condição necessária para a proteção contra a intolerância religiosa. Trata-se de uma tese que pode chocar o leitor pela aparente ausência de espiritualidade, mas pode ser interpretada de modo inverso: a garantia de incolumidade diante do que creio só pode ser dada se sou protegido da intolerância promovida por outras crenças. Só pode fornecer tal garantia um Estado indiferente a todas as crenças e, neste sentido, desespiritualizado.

O princípio da laicidade

A unção ministerial do senador Crivella, para além do que possui de auto-evidente, é portadora de presságios ainda mais preocupantes do que o usual. Se associada a episódios recorrentes da ação da liga evangélica na política nacional, sugere ameaça à República laica. Em iniciativa recente, o líder da Frente Parlamentar Evangélica propôs decreto legislativo para proporcionar “tratamento psicológico” a homossexuais. É o caso de perguntar: é razoável que crenças particulares constituam base para legislação e políticas públicas? Se o clero católico, por exemplo, não admite o uso de preservativos e insiste na tese de que a vida sexual é um estorvo necessário à procriação, que diga isso do púlpito das suas igrejas, mas não transforme a doutrina em política pública, o que seria próprio de um Estado teocrático.

As denominações tradicionais têm, a bem da verdade, entendido isto e têm-se mantido no limite do cuidado espiritual de seus adeptos. É o mercado religioso emergente, heterodoxo não apenas em matéria de doutrina religiosa, mas, sobretudo, nos domínios penal e tributário, que vem se mostrando mais agressivo do que católicos e protestantes tradicionais, em pelo menos duas direções claras: no apetite patrimonial e na maximização de poder político e social. A República tem sido tolerante diante dessa pós-secularização perversa, alimentada pelo alarmante déficit educacional e cultural das classes populares, pelo qual ela é a principal responsável. O controle das almas dá passagem à captura do voto, ao acesso a concessões públicas e à expansão patrimonial, política e financeira. O volume e a dimensão dessa calamidade em curso confere a seus operadores ares de respeitabilidade e imprescindibilidade. O pior de tudo é que a moeda de troca à fidelidade política da liga evangélica excede o prêmio habitual: pode estar em jogo um dos pilares da República democrática, o princípio da laicidade.

***

[Renato Lessa é professor titular da Universidade Federal Fluminense]