Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Moqueca à Crivella

Histórias de pescador são geralmente fantasiosas, mas ao afirmar que sequer sabe enganchar a minhoca no anzol o novo ministro da Pesca, senador Marcelo Crivella (PRB-RJ), não apenas fez uma rara opção pela verdade como escancarou a enganação embutida na criação e manutenção deste Monumento ao Desperdício chamado Secretaria Especial da Pesca.

O herdeiro da Igreja Universal do Reino de Deus, líder da bancada evangélica do Legislativo, completou seu breve convívio com a transparência ao negar que a nova carreira piscatória tenha algo a ver com o esforço do governo federal em reforçar a candidatura de Fernando Haddad à prefeitura de São Paulo. Com isso, só confirmou o real objetivo da manobra. No que foi ajudado pelo devoto ministro Gilberto de Carvalho, ao declarar que a nomeação do Pescador-Mor “vai facilitar a relação com as igrejas.”

Esta indigesta moqueca à Crivella tem o mérito de trazer para a agenda nacional a escamoteada questão do secularismo. O Brasil está retornando rapidamente ao estágio teocrático que vigeu sem interrupções do descobrimento até a votação da primeira Carta Magna republicana, em 1891. Embora seja pacífico que o nosso atraso em matéria de educação, ciência, cultura e imprensa decorra da prolongada sujeição do Estado à Igreja, nada se fez para reverter tão grave deficiência institucional. O Estado de Direito no Brasil é capenga, todos sabem disso. Ninguém tenta reabilitá-lo, tanto na esfera simbólica como administrativa.

O vale-tudo no terreno da fé

Antes do velocíssimo crescimento das seitas evangélicas no Brasil, quem ousava contrapor-se à hegemonia da Igreja eram as diferentes confissões luteranas. O general-ditador Ernesto Geisel, único chefe de Estado ostensivamente anti-católico, em 1976, numa das freadas da sua distensão, aproveitou-se do arsenal autoritário para emplacar de forma solerte a dissolução do casamento e a legitimação do divórcio, o que abalou a Igreja, enfraqueceu sua formidável cruzada em defesa dos direitos humanos e deu à ditadura um amplo apoio popular.

De lá para cá, ditadores e presidentes enfrentaram o poderoso vetor teocrático com a mesma esperteza: contentando de forma equitativa católicos e protestantes, facilitando seus imensos privilégios, concedendo-lhes o ilegítimo acesso aos meios de comunicação eletrônicos e sepultando nas gavetas qualquer debate que possa nos aproximar do Estado de Direito democrático, secular e isonômico. Mesmo o Poder Judiciário – teoricamente comprometido com suas prerrogativas e independência – convive no plenário da Suprema Corte com a discrepante exibição da cruz acima das armas da República. Na Espanha, muito mais católica, isto seria um acinte. Aqui, não chama a atenção dos eleitores, políticos, nem confronta os meritíssimos.

Esta incapacidade de defender o secularismo e a ideia do Estado laico manifesta-se com igual intensidade nas hostes do governo e da oposição. PT e PSDB, geneticamente de esquerda, deram um jeito de driblar os respectivos DNAs e não resistem à tentação de comungar e persignar-se em atos oficiais, mesmo sabidamente ateus, agnósticos ou céticos. Os confessores de hoje não se importam com ave-marias erradas e padre-nossos incompletos, diferentemente do que acontecia nos tempos da Inquisição.

O vale-tudo infiltrou-se no terreno da fé. Crivella, suas minhocas e peixes são o símbolo de um sincretismo que parece coisa do diabo.