Estava frio e úmido quando Anthony Shadid e eu cruzamos na escuridão a cerca de arame farpado entre a Turquia e a Síria, no mês passado. Estávamos entrando no conflito mais sangrento da Primavera Árabe, que explodia já no alto da montanha rochosa e escassamente arborizada que tínhamos de subir uma vez passada a fronteira.
Os contrabandistas que nos esperavam tinham cavalos para levar munições e mantimentos para o Exército Livre da Síria, grupo oposicionista composto principalmente por militares desertores, os quais havíamos vindo para entrevistar, fotografar e tentar entender.
Anthony, que do Iraque à Líbia documentara apaixonadamente para o “New York Times” os levantes no mundo árabe, considerava essencial que jornalistas entrassem na Síria, onde cerca de 7.500 pessoas já foram mortas, a maioria longe dos olhares do mundo.
A munição sobre os cavalos parecia uma prova do risco que corríamos. Mas o verdadeiro perigo, como veríamos, eram os próprios cavalos. Anthony era alérgico. Ele teve uma crise terrível naquela primeira noite. Teria outra, uma semana depois, quando cavalos nos levaram para fora da Síria.
Ele morreu durante essa segunda crise alérgica, com apenas 43 anos, deixando a esposa e um filho de quase 2 anos.
Ao contrário de Anthony, eu não falo árabe. Sou fotógrafo. Mas tentarei ao máximo exprimir o que é a Síria em ebulição -numa semana que revigorou Anthony como jornalista e testemunha.
Atrás da notícia
Tanques sírios bloqueavam as estradas que dão acesso a aldeias espalhadas pela província de Idlib, reduto dos insurgentes. “Isso é realmente andar na corda bamba”, disse Anthony enquanto viajávamos por uma estrada pequena, que os insurgentes consideraram segura.
Nossa jornada na ida nos levou até um grupo de homens que seriam nossos guias. Eles se chamavam de ativistas e eram o lado civil da revolução. Quase todos haviam sido presos e torturados. Há meses não viam suas famílias.
Eles compreendiam a importância de ter Anthony por lá. Jornalistas estrangeiros podem levar as notícias para fora da Síria e então o mundo poderia ajudá-los. Falar árabe lhe permitia conversar sem um intérprete.
A maioria dos combatentes que conhecemos havia recentemente desertado do Exército sírio, dizendo que se recusaram a cumprir ordens de matar seus compatriotas. Fiquei surpreso com a abertura deles. Raramente um deles cobria o rosto ou pedia para eu não tirar uma foto.
Na batalha
Ao pararmos numa base em Saraqib, no noroeste sírio, dezenas de combatentes se apressavam em reunir todas as armas possíveis. “Eles vão sair num ataque”, disse-me Anthony.
Uma coluna de tanques passaria por lá a caminho da cidade de Idlib. Os combatentes eram enormemente inferiores em termos de armas. Eles contaram a Anthony que tentaria atingir um dos tanques com uma bomba caseira e então planejavam atacar o comboio com suas AK-47.
Os combatentes se esconderam junto à rodovia. Alguns civis saíram das suas casas. Desacostumados a ver combatentes por lá, eles claramente encararam o fato como um aviso para procurar locais mais seguros.
Dois tanques passaram antes que os combatentes detonassem a bomba. A grande explosão, errando o alvo, foi a senha para que outros começassem a disparar.
A certa altura, houve ordem para que os tiros parassem. Um tanque havia virado seu canhão na direção contrária ao ataque. Mas a luta recomeçou, solapando a esperança de novas deserções.
Naquela noite, de volta à base, encontrei Anthony, sorriso enorme no rosto, sentado numa sala cheia de combatentes que cantavam e tocavam música.
Era exatamente o tipo de conexão que mais o deixava feliz como repórter; sua grande cordialidade e inteligência contribuíam para fazer dele um dos mais importantes jornalistas cobrindo o mundo árabe.
Ele estendeu os braços e disse alegremente: “Tyler, olha isso!”. Os cantores, contou ele, estavam improvisando a letra, nos agradecendo por testemunhar sua luta.
O que aprendemos? O Exército Livre da Síria é muito mais organizado do que os rebeldes da Líbia. Devido ao número cada vez maior de desertores, há um crescente contingente de soldados e oficiais sírios bem treinados. Mas eles ainda não têm armas para travar uma luta realista.
Sua força está dentro das cidades. O Exército sírio, pouco confiável e já sobrecarregado, reluta em invadi-las. O que ele pode fazer é bombardeá-las indiscriminadamente. Embora eficaz, a tática amplia a condenação ao regime do ditador Bashar Assad.
A vida continua. A maioria das lojas está aberta. Mas hospitais e clínicas mal funcionam. Apagões são constantes e há grave escassez de combustível.
Entre os civis, a maioria se diz favorável à revolução. Mas eles sabem que os combatentes atrairão os soldados e alguns não querem uma crise na porta de casa. Eles viram o que aconteceu em Homs.
De volta para casa
Anthony estava ansioso para voltar à Turquia. Mas antes da fronteira precisávamos descer a montanha.
O caminho mais direto, pelo qual chegáramos, não era mais seguro, porque os “shabiha”, capangas leais ao governo, haviam montado um posto de controle por lá. Teríamos de percorrer uma colcha de retalhos muito mais longa de estradas vicinais.
“Acho que eu nunca vou me recuperar desses postos de controle”, disse Anthony, referindo-se à nossa captura em um deles, na Líbia, 11 meses antes -ocasião em que nosso motorista foi morto e quatro jornalista do Times passaram quase uma semana detidos pelas forças de Muammar Gaddafi.
Quando finalmente chegamos à montanha, havia uma segunda preocupação: os dois contrabandistas que nos aguardavam vinham novamente com cavalos.
Anthony tinha anti-histamínicos e inaladores. Um turbante cobria seu rosto para filtrar o ar. Ele disse aos rapazes para andarem bem à frente com os cavalos.
“Não deveríamos andar na frente dos cavalos?”, perguntei. “Não, eles precisam nos guiar”, disse ele. Mas aí escutei a respiração de Anthony ficando pesada e, após mais ou menos 1,5 km, ele pediu para descansar. Amparando-o pela cintura, continuamos.
Logo depois, Anthony parou e se debruçou sobre uma pedra grande e, então, desmaiou e parou de respirar. Fiz uma a reanimação cardiopulmonar por meia hora, implorando aos contrabandistas para procurarem um médico. Finalmente, uma caminhonete apareceu e carregamos Anthony para a caçamba, sem que eu pudesse aceitar sua morte. Chegamos a uma cidade onde um médico confirmou que Anthony tinha morrido.
Voltamos à montanha. Anthony foi amarrado a um daqueles cavalos e caminhei à frente dele, em choque, até a fronteira.
Horas antes de ele morrer, alguns ativistas gravaram uma entrevista com ele. São as últimas imagens de Anthony. “Você espera que o regime caia?”, perguntou o entrevistador. “Acho que vai cair. Mas acho que vai demorar muito.”
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[Tyler Hicks, do New York Times]