Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quando o juiz exorbitou

Pouco mais de um ano atrás, no final de fevereiro de 2001, o juiz Antônio Carlos Almeida Campelo, da 4ª vara da justiça federal em Belém, tentou impedir que o Jornal Pessoal continuasse a noticiar o andamento do processo instaurado contra os irmãos Maiorana.

Numa iniciativa inédita, insólita e inusitada, o juiz, sem ser provocado pelas partes na demanda (de um lado o Ministério Público Federal e, do outro, os Maioranas), de ofício, despachou nos autos, como parte interessada e não como julgador da questão, e mandou executar sua decisão no dia seguinte. Ela merece ser transcrita novamente. Dizia:

“Tendo em vista a notícia publicada no Jornal Pessoal (Fevereiro de 2011, 1ª Quinzena, pág. 5) e a decisão de fls. 1961 dos autos, na qual decretou o sigilo do procedimento deste feito, oficie-se ao editor do referido jornal com a informação de que o processo corre sob sigilo e qualquer notícia publicada a esse respeito ensejará a prisão em flagrante, responsabilidade criminal por quebra de sigilo de processo e multa que estipulo, desde já, em R$ 200,00 (duzentos mil reais) [o erro é do texto original;o valor correto – ainda que absurdo – era mesmo de 200 mil reais].

O ofício deve ser entregue em mãos com cópia deste despacho.

Intimem-se. Vista ao MPF”.

No mesmo dia do despacho, 22 de fevereiro, uma segunda-feira (primeiro dia útil depois que aquela edição do Jornal Pessoal circulou, o que dá uma medida da rapidez da reação do juiz) o diretor de secretaria da 4ª vara, Gilson Pereira Costa, providenciou o encaminhamento do ofício. Um oficial de justiça me entregou o documento na manhã do dia seguinte, 23.

Abuso de poder

Reagi de imediato. Redigi uma nota pública e a distribuí através da rede mundial de computadores, a internet. Mostrei que a ordem do juiz violava a tutela constitucional à liberdade de imprensa. Ela também era arbitrária e atrabiliária porque o processo fora instaurado a partir de uma ação penal pública proposta pelo fiscal da lei, no caso, o Ministério Público Federal, e aceita pela justiça.

O MPF denunciou os Maioranas pelo delito de fraude para a obtenção de recursos oriundos de renúncia fiscal da União Federal em proveito de projetos econômicos aprovados pela Sudam para desenvolver a Amazônia. Logo, era matéria de interesse público, vedada qualquer forma de cerceamento do acesso aos autos. A ameaça de prisão em flagrante, nesse contexto, era um abuso de poder praticado pelo juiz. A multa por ele fixada, de R$ 200 mil ao dia, constituía outro abuso, já que irrealista e desregrada.

Por que o juiz Campelo se expôs tanto com esse despacho? Avançou muito além de qualquer limite jurisdicional. Tanto que, quatro dias depois de expedir a ordem draconiana, teve que revogá-la. Para não ficar tão mal, restringiu o sigilo ao que nos autos houvesse relativamente a sigilo fiscal e financeiro, matéria ausente do processo. Tão ausente que continuei a noticiar tudo, como volto a fazer nesta edição, sobre o recurso do MPF contrário à sentença.

O juiz reconsiderou seu despacho diante da reação da opinião pública. Certamente se mantivesse o propósito de me multar e me prender, criaria tal escândalo que sua permanência na justiça federal poderia ficar ameaçada. Teve que admitir a sua derrota. Mas ela não significou a vitória completa da opinião pública, da função judicante e do estado democrático de direito.

Uma vez revogada a decisão ilegal, as pessoas esqueceram o episódio. Muitos o debitaram na conta de acidente pessoal, isolado. Mas não foi assim. A prepotência do juiz Campelo integra um conjunto de ações que vêm sendo praticadas por maus magistrados. Eles têm abusado cada vez mais do poder que o exercício da função jurisdicional lhes confere para impor suas vontades ou mesmo tirar proveito pessoal de suas decisões.

Quadro da situação

O caso do juiz Campelo devia ter servido de motivação para combater esses abusos. Uma verificação mais acurada, como a que devia ter sido feita pela autoridade competente, por impulso próprio ou motivada por quem de direito, revelaria que o magistrado decretou o sigilo do processo depois de a matéria deste jornal ter sido publicada e como pretexto para que o conteúdo da instrução processual deixasse de ser revelado à sociedade.

O juiz queria expurgar o tema da agenda da opinião pública. Não só para impedir a propagação do seu modo de agir na audiência realizada com a presença dos Maioranas como, provavelmente, inibir a repercussão sobre a controversa decisão que tomou, favorável aos donos do grupo Liberal.

O magistrado também funcionou como protetor dos réus, ao sentenciar de uma forma híbrida, decidindo em preliminar, mas avançando pelo mérito a pretexto de raciocinar em abstrato sobre situações hipotéticas, algo que soa em dissonância com os parâmetros de um julgamento técnico, no qual se presume que o julgador não tem interesse pessoal. E o juiz Campelo parecia ter. Como ainda parece.

Para redespertar a atenção da opinião pública para essa grave questão, republico a matéria que provocou a reação imediata, desmedida e reveladora do titular da 4º vara da justiça federal. Acho que ajuda a compor o quadro da situação, que se vem agravando em todo país, a ponto de levar a corregedora nacional de justiça, Eliana Calmon, a se referir aos “bandidos de toga”, e a opinião pública a encarar com reservas o poder judiciário em sua formação atual. Sem que as entidades de classe, normalmente corporativas, se preocupem em, desta vez, sair em defesa da reputação da justiça brasileira, sem cobrir com essa bandeira gloriosa seus maus servidores.

Sob o título “Ronaldo confessa. ‘Rominho’ viaja”, foi esta a matéria publicada no JP:

Pela terceira vez seguida o empresário Romulo Maiorana Júnior faltou a uma audiência do processo a que responde por crimes contra o sistema financeiro nacional, perante a 4ª vara cível da justiça federal, em Belém. As duas primeiras audiências de instrução foram adiadas a pedido dele, por se encontrar ausente de Belém. No dia 1º, data marcada com quase cinco meses de antecedência para ouvi-lo, o principal executivo do grupo Liberal estava em Miami, nos Estados Unidos, onde tem residência, adquirida recentemente. Só voltou a Belém na madrugada do dia 6, depois de quase um mês em férias.

Seu irmão, Ronaldo Maiorana, diretor editor-corporativo do principal jornal do grupo de comunicação, foi à audiência, junto com Fernando Nascimento, diretor da TV Liberal, e João Pojucam de Moraes, diretor industrial de O Liberal. Todos estão indiciados no mesmo processo por crime previsto no artigo 19 da lei 7.492, de 1986 (mais conhecida como lei do “colarinho branco”):Obter, mediante fraude, financiamento em instituição financeira”.

A pena prevista é de reclusão, por 2 a 6 anos, e multa. A pena poderá ser aumentada de um terço “se o crime é cometido em detrimento de instituição financeira oficial ou por ela credenciada para o repasse de financiamento”, como é o caso. O que significa que a pena máxima irá a oito anos de reclusão

Condenadopor me agredir fisicamente, em 2005, Ronaldo Maiorana só voltou a ser réu primário no ano passado, quando decorreu o prazo de cinco anos de suspensão da execução da sentença, por acordo que fez com o Ministério Público do Estado, substituindo a aplicação da pena pela doação de cestas básicas a instituições de caridade.

Ronaldo confirmou a denúncia feita pelo Ministério Público Federal, de que ele e o irmão mais famoso fraudaram o capital próprio da Tropical Indústria Alimentícia (nome original da atual Fly, que já foi Bis) para receber dinheiro dos incentivos fiscais da Sudam, o mesmo crime que atribuem ao ex-deputado federal Jader Barbalho, por ter indicado dirigentes da Sudam acusados de desvio de dinheiro público, do qual tirou proveito.

Com o dinheiro público, os Maioranas implantaram uma fábrica de sucos regionais (que se transformou em refrigerantes artificiais do tipo pet) no distrito industrial de Icoaraci. A Sudam liberou 3,3 milhões até 1999, quando começou a investigação da fraude. O processo já dura mais de uma década.

A fraude era simples: os dois irmãos sócios depositavam um valor referente à contrapartida de recursos próprios num dia e o sacavam no dia seguinte, quando a Sudam autorizava a liberação, pelo Banco da Amazônia, da colaboração financeira da União, através de renúncia fiscal. Ronaldo se defendeu alegando que não sabia que essa é uma conduta ilícita. Sua defesa argumentou que, uma vez descoberta a fraude, o dinheiro da Sudam foi devolvido e o projeto implantado a partir daí apenas com recursos próprios.

A ressalva, porém, não atenua a confissão de culpa: a doutrina e a jurisprudência dos tribunais brasileiros são pacíficas, ao caracterizar esse tipo de procedimento como delito formal. Para que ele se consume, basta que seja utilizado um meio fraudulento para acessar recursos públicos, independentemente de haver ressarcimento posterior. A correção do ilícito não elide a culpa. Logo, Ronaldo Maiorana é réu confesso desse crime. O empresário chegou a chorar ao ser questionado pelo representante do MPF no interrogatório.

Esse foi o momento de maior pressão sobre ele. As perguntas feitas pelo juiz Antônio Carlos de Almeida Campelo foram genéricas e não se relacionavam diretamente com os fatos imputados. Ele se interessou por questões como saber quantos empregos o empreendimento gera e se o réu possui outras empresas.

O tom da audiência foi tão cordial que no início da sessão o magistrado perguntou ao réu se poderia chamá-lo de doutor. Ao final, se levantou para cumprimentá-lo e aos seus advogados. Essa afabilidade contrastou com os termos do despacho do juiz em 23 de setembro do ano passado, quando, designando nova data para a audiência, ele escreveu que a instrução do processo “vem sendo postergada por razões diversas. A pedido dos réus”.

O retardamento tem um objetivo claro: protelar o andamento do processo, recebido pelo juiz em agosto de 2008, a partir de denúncia do Ministério Público Federal, depois de oito anos de apuração, para que o crime prescreva e seus autores permaneçam impunes. É o que a justiça precisa evitar que aconteça. Este é o seu papel, não o contrário.

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]