O sr. Gustavo Ioschpe, em entrevista ao portal Terra no dia 27 de abril, ao comentar as greves de professores em defesa do piso salarial nacional, declarou que reajustar os salários do magistério não significa que a educação no país vai melhorar: aumentar salário de professores não é um caminho para a melhoria da qualidade da educação, afirmou ele. O sr. Ioschpe, especialista e mestre em economia da educação nos EUA, declarou ainda: “É surpreendente e decepcionante que o país perca tanto tempo com uma discussão que toda a experiência internacional e brasileira já demonstrou ser infrutífera.”
Em encontros com professores, costumo afirmar que reajustar os salários não significa que a aprendizagem dos alunos irá melhorar automaticamente. Ou seja, se o magistério receber um reajuste de 100% não ocorrerá um impacto imediato de 100% na aprendizagem de matemática, nem mesmo de 10%. Pois, caso isso ocorresse, poderíamos concluir que antes os alunos não aprendiam por uma decisão deliberada dos professores, como forma de protesto pelos baixos salários. E isso seria criminoso, por representar destruir o futuro de milhões de crianças e adolescentes (a grande maioria pobres), que não possuem nenhuma responsabilidade pelas decisões dos gestores e governantes.
Uma atitude desse tipo seria comparável ao médico que deixa parte dos seus pacientes morrerem por falta de tratamento para protestar contra o salário pago pelo SUS. Ou o engenheiro que sabota a construção do prédio para exigir aumento de salário e coloca em risco a vida dos moradores.
O efetivo exercício do trabalho
Discuto essa questão com os professores para que compreendam a armadilha que representa para a categoria quando o movimento sindical vincula, única e exclusivamente, o baixo salário ao grave problema da qualidade da escola pública brasileira. Essa vinculação é que abre espaço para que especialistas como o sr. Ioschpe ofereçam os argumentos necessários para os que querem jogar sobre os salários pagos ao magistério o mau uso dos recursos destinados à educação.
E aí aproveito para perguntar ao sr. Ioschpe: se reajustar os salários não vai elevar a qualidade da educação no país, mantê-los em níveis aviltantes vai contribuir para melhorar? As experiências educacionais internacionais, que o senhor tanto estudou, comprovam que pagar baixo salário melhora a educação mais do que pagar salários dignos profissionalmente? Diz ainda o sr. Ioschpe na entrevista que “…trabalham em uma escola cumprindo carga horária inferior à maioria das profissões e com férias mais longas, e ganha aquilo que é de se esperar para o seu nível de formação e carga horária. Enquanto não superarmos esses estereótipos e mistificações, a discussão nacional não vai pra frente. Estamos discutindo falsos problemas”.
De quais professores fala o sr. Ioschpe? Dos que trabalham em escolas privadas consideradas de excelência, que atendem parte da elite brasileira, que cobram mensalidades dos seus alunos muito superiores ao que ganha na média o professor da escola pública, ou do custo aluno/ano estabelecido pelo Fundeb? Quando o sr. Ioschpe fala de carga horária, provavelmente deve estar se referindo à jornada de trabalho medida em horas, esquecendo-se de analisar o efetivo exercício do trabalho docente e os seus desdobramentos.
Um desafio à resistência dos docentes
Segundo o censo escolar de 2009 do MEC/INEP, o Brasil conta atualmente com 1.882.961 professores atuando na educação básica. Do total de professores da educação básica, 63,8% atuam em um único turno, que são os que o sr. Ioschpe diz que “atuam em uma escola e cumprindo carga horária inferior à maioria das profissões”, argumento que utiliza para defender que o salário pago aos docentes é compatível com o mercado. Na grande maioria, esses docentes são os professores dos anos iniciais do ensino fundamental, contratados para uma jornada semanal de trabalho de 20 a 25 horas semanais, o que dificulta que possam acumular um outro contrato. São professores unidocentes ou polivalentes, ou seja, são responsáveis por alfabetizar e ensinar todos os conteúdos curriculares para, em média, 35 crianças. São esses professores responsáveis, em grande parte, pelo futuro escolar dessas crianças, pois profissionalmente são responsáveis pelo complexo processo de alfabetização e letramento dos alunos, que muitos dos chamados especialistas em educação desconsideram quando se referem aos professores dos anos iniciais do ensino fundamental.
E se não sabe o sr. Ioschpe é bom que passe a considerar em suas análises futuras: alfabetizar e ensinar 35 crianças é considerar que cada uma delas aprende em um processo e ritmo diferentes das demais, não sendo possível parametrizar e modelar técnicas que possibilitem ensinar todas ao mesmo tempo e do mesmo jeito, por mais que queiram impor essa concepção determinados especialistas.
Os professores dos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) são os professores especialistas, que em grande parte ministram uma única disciplina. Do total de professores dessa etapa da educação básica, 66,3% atuam em até cinco turmas, ou seja, são responsáveis por ensinar para, em média, 175 alunos de escolas diferentes. E 17,8% dos professores atuam em mais de nove turmas, o que representa ensinar para no mínimo 315 alunos!
Será que o sr. Ioschpe tem noção do que significa ter sob sua responsabilidade por volta de 250 alunos por semana? Organizar aulas, materiais, lidar com problemas dos alunos e os próprios problemas, improvisar diante da falta de recursos, se locomover de uma escola a outra, conviver com os problemas sociais da comunidade que atravessam os muros da escola e muitas vezes explodem na sala de aula, entre outros que desafiam a resistência pessoal e profissional dos docentes?
A lei do piso salarial nacional
E será que o especialista em economia da educação sabe que a gestão de uma única turma significa, no cotidiano, lidar com situações diferentes a cada dia, pois a complexidade das relações que se estabelecem entre professor-aluno, aluno-aluno e os fatos sociais locais ou não, interferem decisivamente na dinâmica das mesmas e, portanto, no contexto da sala de aula?
Não quero aqui ser leviano e comparar o salário que é pago ao professor com o de outros profissionais, pois correria o risco de ser inconsequente. Importa dizer, como apontam pesquisas internacionais, que o sr. Ioschpe parece consultar e dar credibilidade que o professor brasileiro recebe um dos piores salários pagos ao magistério no mundo, inclusive comparando com países com PIB mais baixo. E por outro lado, em todo o mundo governantes e pesquisadores afirmam que a educação, principalmente a formal, é o principal recurso de que dispõe a humanidade para fortalecer a democracia, implementar um modelo de desenvolvimento sustentável e mais justo socialmente e reduzir as diferenças existentes entre os países e povos ricos e pobres.
Se a educação possui essa importância global, aqui no Brasil os governantes e os empresários dizem que o crescimento econômico verificado nos últimos anos não se sustentará sem que ocorra a melhoria efetiva da qualidade das escolas públicas, formando alunos que atendam aos desafios impostos pela competitividade da globalização e do mercado. São interesses fundamentalmente empresariais e econômicos, mas que demonstram o quanto a educação esta no centro dos interesses de todos os setores sociais.
Se a educação é fundamental para o país, estamos falando, portanto, dos professores das escolas públicas, aos quais o governo federal garantiu em lei um piso salarial nacional que no início de 2012 deveria ser de R$ 1.451,00 para uma jornada de 40 horas semanais e que, infelizmente, muitos governantes não cumprem o que determina a lei.
Políticas e prioridades
O que diz o sr. Ioschpe sobre os governantes que não cumprem a lei federal que determina o piso salarial como o menor salário a ser pago a um professor de escola pública? Nada! Se os governos estaduais e municipais cumprissem a lei do piso, inclusive criando planos de cargos, carreiras e remuneração que valorizassem efetivamente o profissional da educação, não estaríamos aqui discutindo os salários aviltantes nem os professores precisariam recorrer à greve, que sabemos o quanto é desgastante para o magistério e para os alunos e seus familiares. Bastaria os governantes fazerem o mínimo: cumprir a lei federal que instituiu o piso nacional como o menor salário a ser pago aos professores das escolas públicas que o desejo do sr. Ioschpe seria atendido!
E aí poderíamos estar discutindo outras questões que estão associadas à qualidade da escola pública, como:
** qual o currículo adequado para os cursos de formação inicial de professores, que efetivamente garanta aos futuros profissionais o conhecimento didático necessário para que possam ensinar com qualidade a todos os alunos;
** quais as estratégias formativas mais adequadas, que possam substituir os estágios como hoje são desenvolvidos em grande parte das instituições formadoras, para que os futuros professores possam se apropriar da cultura escolar e profissional, na perspectiva de contribuir para que a escola possa se transformar em uma organização social flexível e permeável;
** construir um amplo movimento de educadores, não subordinado aos órgãos governamentais, que debata nas escolas e comunidades o projeto educativo para o país que possa efetivamente orientar as políticas educacionais que são fundamentais para que a escola pública possa ser de qualidade;
** debater com as comunidades, sindicatos, conselhos escolares, do Fundeb, e outras instituições e movimentos interessados em discutir a educação, quais devem ser as prioridades para investimentos dos recursos destinados à educação e que estão associados a qualidade do ensino e da aprendizagem.
Esses, e muitos outros temas, devem fazer parte permanentemente dos debates entre os profissionais da educação e seus sindicatos, pois quem faz a educação são aqueles que cotidianamente estão nas escolas e salas de aula, portanto são os que podem, e devem, estar à frente das definições das políticas educacionais do nosso país. Caso contrário, veremos sempre os especialistas dizendo o que é importante para a educação, um pequeno grupo planejando as políticas educacionais e as prioridades para o país, alguns determinando como e quando serão implementadas, os educadores nas escolas executando o que mandaram ser feito e os milhões de alunos sofrendo os efeitos perversos do que se decidiu em algum lugar distante das escolas.
Uma outra escola pública
Isso não significa, como tenta nos fazer crer o sr. Ioschpe, que a discussão salarial é perda de tempo, ou que os professores estão satisfeitos com a remuneração que recebem, e que falar em desinteresse pelo magistério é bobagem. Em todo o país grande parte dos professores são contratados em caráter precário, muitos lecionam disciplinas para as quais não foram formados em decorrência da dificuldade das secretarias de contratar professores habilitados em diversas especialidades, como física, química, matemática, biologia, entre outras. Por outro lado, como especialista em economia da educação deveria saber que quanto mais atrativos são os salários e os benefícios oferecidos, maior é a capacidade de se atrair e reter os profissionais mais qualificados. Não é por outro motivo que algumas das chamadas escolas privadas de excelência chegam a pagar salários superiores a R$ 10.000,00 mensais.
Finalizando, é preciso que a importância que se atribui à educação se converta em medidas concretas, valorizando a escola pública e seus educadores na mesma proporção da responsabilidade que se deposita na instituição escolar e seus profissionais. Da mesma forma que se avalia o professor e seus alunos, por meio das avaliações externas de desempenho, é preciso que a sociedade avalie os gestores, as políticas e as prioridades que definem, os modelos de gestão que adotam para o sistema de ensino e as relações que estabelecem com os educadores e as comunidades. Se a qualidade da educação tem como centro a escola pública (o que significa seus profissionais e alunos), é preciso não perder de vista que ela integra um sistema e, portanto, sofre as consequências das decisões que são tomadas no órgão central, que muitas vezes trata o desempenho escolar como responsabilidade única e exclusiva dos seus profissionais.
Se não sabe o sr. Ioschpe, é bom que saiba: muitos professores estão cansados, desiludidos de tanto ouvir que a educação é prioridade e não perceberem essa importância de se transformar em ações efetivas que mudem a realidade das escolas e salas de aula. Ou investimentos efetivos na valorização do trabalho que desenvolvem. O que garante os avanços que a escola pública vem tendo nos últimos anos é que, apesar de tudo que ao longo da história as elites e os governantes fizeram no nosso país para reduzir a qualidade da escola pública quando esta se tornou acessível para todos os pobres e excluídos, ainda existem muitos professores que teimam em militar pela profissão docente e a resistir por acreditarem que é possível uma outra escola pública. Diferente daquela que projeta o sr. Ioschpe.
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[Walter Takemoto é educador, Salvador, BA]