Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um crime perfeito

Em matéria de crimes perfeitos, o abuso sexual de crianças e adolescentes pode, tranquilamente, ser colocado em primeiro lugar: a vítima, intimidada e sem saber o que está acontecendo, prefere se calar e obedecer ao agressor. Quando fala, corre o risco de ser acusada de mentirosa. E o crime pode se repetir até a vítima deixar de ter interesse para seu agressor. O dia em que as ex-crianças abusadas resolvem falar, então é tarde demais. O agressor não pode mais ser punido, pois, segundo a lei atual, o crime prescreve em 16 anos.

O que fazer para mudar essa situação? O que a mídia pode fazer para ajudar? Falar do assunto publicamente – especialmente se a vítima é uma pessoa famosa – pode contribuir. E nisso a imprensa tem um papel fundamental. Depois do depoimento de Xuxa ao Fantástico (domingo, 20/5), “aumentou em 30% o número de denúncias sobre abuso sexual infantil no serviço de denúncias por telefone apenas nos dois primeiros dias”, segundo apurou a revista Veja (edição nº 2271, de 30/5/2012), que dedicou oito páginas ao assunto. Foram 285 mil chamadas.

Na reportagem, Veja fala de famosos e anônimos que foram vítimas na infância. Entre eles a apresentadora de TV norte-americana Oprah Winfrey, que, ao contrário de Xuxa, nunca teve suas declarações contestadas. Nunca ninguém disse que Oprah estava querendo melhorar o ibope ao fazer programas inteiros discutindo o assunto.

O mito das famílias pobres

O tema, aliás, é quase recorrente nas séries policiais como Lei e Ordem SVU, Criminal Minds e outras veiculadas nos canais por assinatura. E a gente fica se perguntando se os americanos são mais doentes do que nós ou se os roteiristas das séries descobriram o quanto o crime contra crianças comove os espectadores.

Veja faz outra revelação importante: a de que crimes sexuais contra crianças ocorrem em todo tipo de família: pobres, ricos, educados e sem cultura alguma. Diz Rosana Morgado, professora da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “Dissociar o fenômeno da pobreza é fundamental para descontruir o mito de que ele não ocorre nos lares mais abastados”.

Um engano denunciado também na cartilha do Ministério da Justiça que faz parte da Campanha de Prevenção à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. O mito, segundo a cartilha, é que esse tipo de crime acontece com mais frequência em famílias pobres. A verdade:

“Embora os indicadores apontem isso, é mais comum que as famílias de baixa renda procurem os serviços de proteção a crianças e adolescentes do que as famílias de renda mais elevada. Por essa razão, os casos registrados em famílias de baixa renda aparentam ser mais numerosos.”

Formar e informar

Em meio a depoimentos comoventes e até chocantes, Veja faz o que poderia ser até um mea-culpa da imprensa ao dizer que…

“A multiplicação das denúncias é um fenômeno que se repete sempre que alguma rachadura joga luz sobre o mundo escuro, sórdido e solitário dos abusos sexuais de adultos contra crianças, um universo cujas verdadeiras estatísticas ficam escamoteadas sob o manto do silêncio e do medo. Quantificar um crime sobre o qual paira o segredo é tarefa dificílima. As estatísticas são sempre menores que a realidade.”

Talvez o melhor serviço que a imprensa possa prestar seja orientar adultos sobre a melhor forma de prevenir esse tipo de crime. Esperar que outra celebridade tenha coragem de falar do assunto é muito pouco. Falar e deixar o assunto morrer é uma omissão grave. Serve apenas para aumentar o ibope de programas de tv e vender alguns exemplares a mais de jornais e revistas. É parte do interesse da imprensa enquanto negócio, mas fica bem longe da sua verdadeira missão: formar e informar.

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[Ligia Martins de Almeida é jornalista]