Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Meia-verdade, meia-cobertura

Os livros de história registram que o Brasil viveu sua ditadura militar entre 1964 e 1984. Foram duas décadas de perseguições políticas, milhares de brasileiros torturados em porões fétidos e centenas de mortes. Desde maio, a presidenta Dilma Rousseff, ela própria vítima do regime de exceção, faz questão de ser a “garota-propaganda” de uma alardeada Comissão da Verdade. A agenda pública federal pautou a cobertura midiática. O movimento, avalizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), apresenta diversos problemas. O mais grave é o caráter conciliatório. Os grandes veículos preferiram não avançar e editorializaram a cobertura com o olho do Planalto. Optaram em transformar a Comissão da Verdade em uma “comissão da meia-verdade”.

É impossível se furtar ao juízo axiológico do movimento midiático. A tendência social objetiva do ato está explícita nas intenções subjetivas capitaneadas pela presidenta. A cobertura da imprensa tornou-se débil e dependente das fontes oficiais. Tem sido uma meia-cobertura.

Nas demais ditaduras sul-americanas, as repúblicas trataram de julgar os militares que maltrataram seus compatriotas. No Brasil, podemos tomar como marco do enfraquecimento do regime a promulgação da Lei da Anistia, em 1979. O regime, então em frangalhos, resolveu fazer um mea-culpa com os perseguidos. À luz da própria institucionalidade, os carrascos assumiram as barbaridades. A partir daí, obviamente, nada mais natural que os torturadores, assassinos e os coniventes com a ditadura fossem punidos pelos crimes. Contudo, nada ocorreu. E a razão é elementar. As forças que condenaram o Brasil a anos de trevas seguiram operando normalmente a máquina estatal. Não havia interesse em denunciar simpáticos senhores, fantasiados de democratas, como criminosos.

Pauta aceita

Por razões bem claras, o PT fez a Comissão da Verdade nascer incompleta e falsa. Serão apenas dois anos de funcionamento, pouca dotação orçamentária e poder apenas para convidar acusados. A presidenta desponta como a mediadora do conflito com as Forças Armadas. Ao mesmo tempo em que chora a própria tortura e lamenta a morte de ex-companheiros, Dilma diz como a imprensa deve agir. Comete a indecência de colocar algozes e vítimas na vala comum. A comissão aventa a hipótese de julgar homens de esquerda que foram cruelmente punidos durante os anos de chumbo. A mera possibilidade é um novo crime patrocinado pelo Estado. A respeito dessa manipulação vil e orquestrada, Theodor Adorno e Max Horkheimer escreveram:

“Mesmo se a planificação do mecanismo por parte daqueles que manipulam os dados da indústria cultural seja imposta em virtude da própria força de uma sociedade, que, não obstante toda racionalização, se mantém irracional, essa tendência fatal, passando pelas agências da indústria, transforma-se na intencionalidade astuta (grifo do autor) desta última. Para o consumidor (de notícias), não há mais nada a classificar que o esquematismo da produção já não tenha antecipadamente classificado”.

O que Adorno e Horkheimer nos alertam é decisivo. A cobertura da Comissão da Verdade é ditada pelos interesses governamentais, notadamente alinhados com aqueles que conduziram o Brasil de 1964 a 1984.

Não há interesse em denunciar os crimes, como deixa bem claro a fala da presidenta Dilma. A Comissão da Verdade vem para legitimar a permanência dos criminosos do regime militar no seio do Estado. O cenário fica mais lastimável porque sabemos que os generais dificilmente sentarão no banco dos réus. A idade fará com que eles morram antes de qualquer investigação. Caberá unicamente à história, escrita pela caneta conciliatória, julgar os criminosos.

Como a sociologia já provou, sabemos que as consequências ideológicas das práticas sociais da ditadura militar permanecem vivas mesmo depois de eliminadas. Quando o governo brasileiro estende a mão para os culpados, volta a reproduzir, utilizando uma nomenclatura freudiana, o instinto de Tanatus que perambulou pela sociedade brasileira por duas décadas, ficando explícito nas manifestações de agressividade ocorridas nos quartéis. Quando a Comissão da Verdade inocenta réus declaradamente culpados e a imprensa aceita a pauta, a impunidade é reificada e se reproduz entre nós.

Nova ferida

A impunidade que sustentou a ditadura militar brasileira segue ostensiva em nossa sociedade. O modus operandi dos generais recebe apoio popular. Recente pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, ouviu a população de 11 capitais e apontou que metade dos entrevistados apoia a tortura para obter provas em tribunais. A constatação é prova cabal que ainda não foi possível extinguir as práticas ditatoriais implantadas no Brasil.

A mídia reifica o “espetáculo” dos militares e mantém a percepção deformada da audiência com relação à violência. Evidentemente, a manutenção desse Estado é feita sob a bandeira democrática. Se os brasileiros são livres, qual a razão de punir o outro? Por que alimentar o revanchismo? A gênese da Comissão da Verdade impede as respostas. A ironia de Tocqueville, porém, escancara o problema: a tirania deixa livre o corpo e investe diretamente sobre sua alma.

A tirania atual não empunha fuzis e está longe de torturar. A construção de uma pretensa verdade se faz com lágrimas e frases grandiloquentes, que pouco ou nada dizem. A Comissão da Verdade abre outra ferida no coração dos brasileiros: a indignação. A memória daqueles que deram a vida por amor ao próximo e os danos irrecuperáveis que as torturas causaram não podem ser tratados como acidente histórico. São crimes contra a humanidade. É hora de resistir e não aceitar as meias verdades.

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[Pedro Blank é jornalista e mestrando do Curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG)]