A edição especial da revista Realidade sobre a Amazônia, publicada em outubro de 1971, tornou-se um marco na história da imprensa brasileira. O jornalista Raimundo Rodrigues Pereira coordenou mais de 20 repórteres e fotógrafos que, durante cinco meses de viagem percorreram 131 localidades de um Brasil então distante para a maioria dos brasileiros. O reconhecimento do trabalho jornalístico veio em 1972 com o Prêmio Esso de Jornalismo e o de Melhor Contribuição à Imprensa. Se a histórica edição costuma ser lembrada como exemplo de qualidade no jornalismo, um fato não menos importante está na memória apenas daqueles que participaram da cerimônia de premiação do programa da Esso naquele ano, na sede da revista Manchete, edifício Russell, no Rio de Janeiro.
Para evitar declarações de contestação aos atos de censura e de violação dos direitos humanos, como ocorrera em edições anteriores, a multinacional manteve os almoços de confraternização, mas decidiu retirar do cerimonial a parte dedicada aos discursos dos jornalistas vencedores. Apesar da restrição, Raimundo Rodrigues Pereira distribuiu cópias do discurso aos convidados e, como gesto simbólico, fez sua leitura. O fato é pouco conhecido, pois não há registros impressos da repercussão do episódio nos jornais, muito provavelmente em razão do cerceamento de informações pelos órgãos de censura.
A apuração dos crimes
Em entrevista concedida por ocasião da minha pesquisa de doutoramento sobre o Prêmio Esso no contexto da ditadura militar, concluída em 2010, Raimundo conta que preparou um texto motivado pela tortura e morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino, do Jornal da Tarde, por integrantes da Operação Bandeirantes (Oban), que atuava como polícia política paralela, complementando a máquina de terror do Estado:
“Estávamos vivendo o impacto daquela morte, que teve uma certa repercussão. Os detalhes me escapam, mas fizemos um protesto contra a situação geral. A reportagem era extraordinária, mas não dizia respeito ao prêmio em si nem ao mérito. Era um protesto contra a ditadura e dedicamos o prêmio ao Merlino.”
Luiz Merlino fez parte da primeira equipe do Jornal da Tarde, fundado em janeiro de 1966. Iniciou sua militância no movimento secundarista e participou ativamente do movimento estudantil em 1968, quando ingressou no Partido Operário Comunista (POC). Tinha 23 anos quando foi preso em sua casa, na cidade de Santos (SP), em 15/07/1971. Foi torturado nas dependências do Destacamento de Operações e Informações – Centro de Operações e Informações (DOI-Codi) de São Paulo e seu corpo entregue à família em 20/07/1971. O DOI-Codi era comandado na época pelo militar Carlos Alberto Brilhante Ustra. A versão oficial informou que ele teria se jogado embaixo de um carro na BR-116, na localidade de Jacupiranga (SP), após escapar da escolta que o estaria conduzindo para Porto Alegre “para entregar companheiros”. As informações sobre a tortura e o assassinato de Merlino foram extraídas do livro Dos filhos deste solo – Mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar: a responsabilidade do Estado, de Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio. Cerca de 800 jornalistas compareceram à missa de 30º dia pela morte do jornalista na Catedral da Sé, em São Paulo, apesar do aparato repressivo montado no local.
Quarenta anos depois do protesto de Raimundo Rodrigues Pereira, a Justiça de São Paulo condenou, no último dia 26 de junho, o coronel reformado do Exército Brilhante Ustra a indenizar a família do jornalista Luiz Merlino. Que o gesto de Raimundo e a memória de Merlino estimulem o debate em torno da apuração dos crimes cometidos por agentes do Estado durante a repressão política nos anos 1960/ 1970, apesar da dificuldade do país em lidar com seu passado ditatorial.
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[Marcio de Souza Castilho é professor adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF)]