Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Projeto traz mais benefícios do que problemas

Escrevi recentemente artigo em que criticava o PL 180/2008. Porém, analisando mais detalhadamente o teor da lei e em confronto com o que fora publicado pela imprensa, este PL traz mais avanços do que retrocessos, levando em conta o conjunto da população brasileira.

Tenho de dar a mão à palmatória por ter acreditado na imprensa, e não apenas em qualquer imprensa, mas no Correio Braziliense, quando o mesmo menciona em sua matéria publicada na quinta-feira (9/8): “Aprovado no Senado na noite da última terça-feira, o escopo do projeto de lei das cotas divide as vagas meio a meio – 25% do total serão destinadas aos estudantes negros, pardos ou indígenas, de acordo com a proporção dessas populações em cada estado baseada em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto a outra metade será destinada aos estudantes que tenham feito todo o segundo grau em escolas públicas e cujas famílias tenham renda per capita de até um salário mínimo e meio. Os 50% restantes continuam abertos para livre concorrência” [ver aqui].

Mas a lei diz, em seu artigo 3º: “Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)” [ver aqui]. E o artigo 1º assim prescreve: “Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita.” Desta forma, não há que se falar em recorte racial dentro dos 25%, como diz a matéria do Correio Braziliense, mas dentro dos 50% a partir da lei aprovada no Senado.

Novo cenário de matriculados

O que pode ter provado uma incompreensão é a redação do parágrafo único deste artigo 1º, o qual menciona ser a metade das vagas reservadas pela Lei destinada ao critério econômico sem mencionar aí o quesito racial. De minha parte também me policio e me penitencio por não ter ido com mais afinco a literalidade da lei aprovada. Já devia saber que nossa imprensa nesta seara, a da questão racial, não tem a mínima credibilidade.

Após este introito, passemos a analisar de o porquê este PL pode ser considerado um avanço de inclusão racial em universidades públicas federais. De antemão tenho de explicar algo que foge das preocupações de nossos jornalistas, o uso indiscriminado e impossível da soma de negros e pardos, quando o correto segundo o IBGE é a soma de pretos e pardos. Em nenhuma passagem da lei usa-se o termo ‘negro’, pois o legislador foi bem assessorado por alguém ou por sua própria inteligência sobre como é classificado o seguimento negro em nossa sociedade segundo o instituto. É possível que a imprensa tenha dificuldade no uso da palavra ‘preto’ imaginando estar cometendo “um crime”. Usarei os critérios estabelecidos pelo IBGE na classificação da população brasileira, ou seja, negros segundo o IBGE é a soma de pretos e pardos [ver aqui].

Inicialmente, tomarei como exemplo os estados onde se concentram o maior número de negros e aí verificar um novo cenário mínimo de matriculados, comparando com uma realidade anterior. E depois apresento os estados onde o sistema de cotas poderá ser prejudicial em relação à sistemática atual.

De 38% para 40%

Comecemos por São Paulo. Neste estado a população de negros está na ordem de 12.500.000 (32% do total do estado). Neste caso, tomando como base a Unifesp, 9% de suas vagas em cada curso são disponibilizadas para as cotas raciais seguindo a autonomia universitária que rege o sistema de ações afirmativas. O PL fará com que este percentual aumente para 16%, pois o percentual de 32% (proporção de negros em SP) será aplicado sobre 50%. (O caro leitor deverá sempre aplicar o percentual de negros na federação sobre 50% das vagas em todos os demais casos.)

Em Minas Gerais, 10.400.000 negros (53% do total do estado), sua principal universidade federal, a UFMG, não tem cotas raciais, mas um programa de bônus. Ou seja, um percentual X acrescentado à nota para quem vem de escola pública e um percentual X+Y para quem vem de escola pública e se autodeclara preto ou pardo. O problema deste sistema diz respeito à possibilidade de quem não tem direito ao bônus procurar tirar uma nota muito superior aos bonificados e assim procurar anular os efeitos deste sistema de ações afirmativas. Pois bem, com a adoção do PL 180 para a UFMG, o que antes era imprevisível o número de negros matriculados em cada curso, agora teremos a certeza que no mínimo em cada curso, a possibilidade de serem matriculados negros e negras é certa, ou seja, 27% de negros em cada curso. Da imprevisibilidade de terem negros, por exemplo, num curso de medicina, agora podemos ter 27%.

No estado da Bahia, 10.800.000 de negros (82% do total do estado), a reitora foi feliz em afirmar que apenas serão feitos alguns ajustes. Neste estado, o percentual do IBGE pelas regras atuais se abate sobre 45% das vagas, com a introdução da nova lei, o percentual do IBGE se abaterá sobre 50%. Assim em cada curso haverá um acréscimo de matriculados, passando de 38% para 40%.

Bonificação social

No Rio de Janeiro, pouco mais de 7.000.000 de negros (46% do total do estado), o grande alvo é a excludente UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, que disputa no tapa com a USP para saber quem exclui mais negros e negras dos cursos mais concorridos. Até que depois de muita pressão, o conselho desta universidade resolveu adotar cotas, mas sociais. Raciais eles desprezam. Assim sendo, num ambiente em que a possibilidade de ter turmas com a ausência de negros segundo as regras estipuladas por sua autonomia, com este PL aprovado, temos a oportunidade de vermos matriculados em cada curso, em cada turma um percentual mínimo de 24% de negros aprovados.

No estado do Pará, a população está em torno de 5.400.000 de negros (77% do total do estado) e haverá um leve declínio passando dos atuais 40% em cada curso e turma, em face do sistema de cotas implantado, para 38% ou 39% com a introdução dos critérios adotados pelo PL 180/2008.

Em Pernambuco e no Ceará, a população de negros em cada estado está na ordem de 5.300.000 (62% e 65% respectivamente do total geral). Não existem ações afirmativas pelo recorte racial. Apenas em Pernambuco há uma bonificação social. Com o PL teremos uma grande revolução, ou seja, passaremos a ter em cada universidade 31% e 32% de matriculados negros – respectivamente – em cada curso e turno.

20% de negros

Para encerrar estes primeiros exemplos, temos o estado do Maranhão, com uma população de 4.600.000 de negros (75% do total do estado). O sistema de cotas raciais aplicado pela universidade promove a inclusão em cada curso e turno um percentual de 25%. Com a introdução das regras previstas no PL 180, teremos um aumento para 38% em cada curso e turno.

Por outro lado, abro um parêntese para analisar os três estados onde este PL poderá promover um decréscimo de vagas para negros, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. No estado gaúcho, há em torno de 1.700.000 de negros (16% do total do estado). Em sua principal universidade UFRGS há uma previsão de 15% para negros. Com o PL este percentual cai para 8% das vagas abertas destinadas para negros.

Em Santa Catarina, 700.000 negros (12% do total do estado), há previsão em cada curso de 10% para autodeclarados negros. Com o PL este percentual beneficiado em cada curso e turno ficará em torno de 6%.

E finalmente o estado do Paraná, um estado com 2.660.000 de negros (26% do total do estado). Na situação atual, sua principal universidade federal, a UFPR, prevê 20% autodeclarados negros. Com a sistemática a ser implantada, a previsão ficará em torno de 13%.

Instituições federais

Estes três exemplos de perda não tem o condão de tornar ineficaz a inclusão racial no Brasil como um todo. Não existe sistema perfeito que atenda a todos quando estamos diante de número estatísticos. É um sacrifício a ser suportado por poucos em prol da maioria.

Como podemos notar, o percentual de cotas nos estados onde a população de negros é mais elevada fica distante dos números do IBGE, mas não podemos deixar de observar uma grande mudança no Brasil como um todo. Mas de 100 anos de mentiras e massacre psíquico pós 1888 talvez tenha brecado uma demanda por um maior número de vagas. Estamos numa transição e temos de aproveitar o máximo possível os efeitos desta lei que nasce única e exclusivamente por pressão do Movimento Negro – o legislativo é consequência desta pressão.

Após a análise destes exemplos aqui trazidos, devemos nos ater ao disposto no artigo 8º da referida lei quando menciona: “As instituições de que trata o art. 1º desta Lei deverão implementar, no mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) da reserva de vagas prevista nesta Lei, a cada ano, e terão o prazo máximo de 4 (quatro) anos, a partir da data de sua publicação, para o cumprimento integral do disposto nesta Lei.”(2). Acredito que a pressão do movimento negro obrigará que nenhuma universidade espere para por em prática apenas no último ano o previsto nesta lei.

E para encerrar este artigo, ressalto que esta lei não se dirige apenas a negros, mas também às demais etnias não-negras e também ao grupo indígena deste país. Esta lei abraça ainda as instituições federais de ensino médio e técnico no Brasil.

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[Francisco Antero Mendes Andrade é servidor público, São Paulo, SP]