Parece uma queda travada pelos dois braços de uma só pessoa. De um lado da mesa, a Constituição, que garante a liberdade de expressão, de imprensa e de acesso à informação. Do outro, o Código Civil, que garante ao cidadão o direito à privacidade e o protege de agressões à sua honra e intimidade. Dito assim, parece perfeito -mas os copos e garrafas afastados para os lados, abrindo espaço para a luta, não param em cima da mesa.
A Constituição provê que os historiadores e biógrafos se voltem para a história do país e reconstituam seu passado ou presente em narrativas urdidas ao redor de protagonistas e coadjuvantes. Já o Código Civil, em seu artigo 20, faz com que não apenas o protagonista tenha amparo na lei para se insurgir contra um livro e exigir sua retirada do mercado, como estende essa possibilidade a coadjuvantes de quarta grandeza ou a seus herdeiros.
Significa que um livro sobre d. Pedro 1º pode ser embargado por algum contraparente da família real que discorde de um possível tratamento menos nobre do imperador. Ou que uma tetra-tetra-tetraneta de qualquer amante secundária de d. Pedro não goste de ver sua remota avó sendo chamada de cortesã -mesmo que, na época, isso fosse de domínio público-, e parta para tentar proibir o livro.
Liberdade soberna
Quando se comenta com estrangeiros sobre essa permanente ameaça às biografias no Brasil, a reação é: “Sério? Que ridículo!”. E somos obrigados a ouvir. Nos EUA e na Europa, se alguém se sente ofendido por uma biografia, processa o autor se quiser, mas o livro segue em frente, à espera de outro que o desminta. A liberdade de expressão é soberana.
É a que se propõe o Associação Nacional dos Editores de Livros: arguir no Supremo Tribunal Federal a inconstitucionalidade do artigo 20 do Código Civil. Assim que terminar o mensalão.
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[Ruy Castro é colunista da Folha de S.Paulo]