O procurador-geral de Justiça de Minas Gerais, Alceu José Torres Marques, afirmou recentemente que sem a imprensa seria muito difícil para o Ministério Público impedir a volta ao passado após o fim do regime militar (1964-1984), conforme a missão que lhe foi atribuída a partir da Constituição Federal de 1988. A declaração ocorreu em Belo Horizonte durante entrega da comenda “Francisco José Lins do Rego” aos jornalistas mineiros Alberico Souza Cruz, ex-diretor responsável pela Central Globo de Jornalismo, e Dídimo de Miranda Paiva, ícone do jornalismo brasileiro que teve a sua vida e obra relatada em livro, já na sua segunda edição.
Torres foi justo com os jornalistas, embora haja um descompasso entre essas duas representações democráticas. O MP é uma instituição pública, bem fiscalizada e bem remunerada, que deixou de atuar apenas dentro dos tribunais criminais para ter um novo papel na sociedade a partir de 1988, ao acabar com a sua função meramente acusatória e defensora da União para assumir a defesa dos interesses difusos e coletivos da sociedade.
Houve, com isso, uma convergência de objetivos que colocaram na mesma direção jornalistas e promotores, na busca da verdade. Mas a imprensa, ao contrário do MP, não avançou um centímetro após a vigência deste novo texto constitucional, a não ser usufruir dos direitos previstos no seu Art. 5º de expressar o que pensa.
Não sabiam o que é a Constituição
A tão decantada liberdade de imprensa é hoje uma ferramenta que serve a dois senhores – o do bem e o dom mal – porque o jornalista é um profissional autônomo e os veículos de comunicação, ao contrário do MP, visam ao lucro e ao poder. Portanto, a informação representa, para muitos profissionais da imprensa, uma moeda perigosa de manipulação dos fatos.
Essa situação piorou com a dispensa do diploma de jornalista (STJ/2009) e a fragilidade da categoria que não tem um controle interno para fiscalizar os maus profissionais. Na verdade, a classe jornalística, que tanto contribuiu para a elaboração da CF de 1988, abdicou do direito de atuar em causa própria para, simplesmente, noticiar as mudanças constitucionais. Parou no tempo. Como repórter constituinte da nova Carta Magna em Brasília, vivenciei esse momento histórico da democracia e desde o dia em que ouvi do presidente eleito Tancredo Neves a afirmação de que “a convocação da Assembleia Nacional Constituinte é mais importante do que ter o primeiro governo civil”, passei a imaginar os ganhos que a imprensa e a sociedade teriam com essa nova Constituição. Infelizmente, o povo pouco sabia o que estava por vir.
A ignorância era tanta que o chefe de redação do Correio Braziliense, Renato Riella, recomendou-me em 1987, no auge do debate sobre o assunto, uma enquete matinal sobre o que representava para a população da capital federal a nova Constituição e o resultado foi catastrófico. Mais da metade dos entrevistados não sabia o que era uma Constituição.
Os principais ganhos do MP
Mas enquanto boa parte do povo ignorava a nova Constituição e os jornalistas se diziam satisfeitos com a liberdade, os implacáveis e desalmados “promotores de acusação”, até então limitados às ações criminais, resolveram acabar com esse estigma e avançar os seus direitos.
De olho na “Comissão de Notáveis”, formada pelo governo por 50 integrantes que redigiram um anteprojeto de texto constitucional – o Anteprojeto Afonso Arinos, em homenagem ao presidente da Comissão de Estudos Constitucionais –, os promotores realizaram, em 1986, o VI Congresso Nacional para discutir os interesses da categoria visando a Constituinte. Houve também a aprovação da “Carta de Curitiba”, tirada do 1º Encontro Nacional de Procuradores de Justiça e presidentes de associações ligadas ao Ministério Público. Essa mobilização introduziu na “Comissão Afonso Arinos” a maioria das conquistas obtidas dois anos depois pela instituição.
Os principais ganhos foram a autonomia administrativa e financeira e dotação orçamentária própria; a eleição dos procuradores-gerais de Justiça dos estados e do Distrito Federal dentre os integrantes da carreira; função de defesa do regime democrático (copiado da Constituição Portuguesa de 1976); da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis; promoção privativa da ação penal publica e o fim da defesa da União.
Maus profissionais e patrões corruptos
Não foi um trabalho fácil. O MP estava dividido, por exemplo, sobre a sua desvinculação da Advocacia da União (AGU). O ex-procurador-geral da República e relator do capítulo do Ministério Público na Comissão Afonso Arinos, Sepúlveda Pertence, teve dificuldades para convencer os mais radicais da necessidade de uma verdadeira revolução dentro do MP para a sua emancipação.
Pertence conta detalhes dessa “guerra de nervos” travada no seio da instituição na revista comemorativa dos 40 anos do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) – Projeto Memória –, editada em 2008 e da qual faço parte. A queda de braço gerou conflitos de vaidades e muita confusão. Os jornalistas que cobriam essa Comissão do anteprojeto com as alterações propostas pela ala progressista do MP se diziam diante de uma caixa de marimbondo.
Felizmente, prevaleceu o improvável para muitos. Na minha modesta opinião, a autonomia conferida aos procuradores e promotores foi a principal conquista da instituição. Pois bem. E os jornalistas, o que fizeram esse tempo todo além de cobrir os fatos? O que fez a classe para assegurar os seus direitos e prestar um bom serviço à sociedade, na condição de Quarto Poder dentro da estrutura democrática? Nada. Absolutamente nada. Não houve reforma da Lei de Imprensa e nem se assegurou o direito mínimo de exigência do diploma para o exercício da profissão. Hoje vivemos à deriva, vítimas dos maus profissionais e dos patrões corruptos que fazem o que bem entendem com as redações, impingindo à categoria situações humilhantes de ter que omitir fatos ou inventá-los sob ameaça de desemprego, com salário de migalhas.
Parceria jornalistas-promotores
Diante do poder que hoje tem o promotor e das dificuldades que têm os jornalistas para a publicação de fatos de interesse público de difícil elucidação sem correrem o risco de uma ação judicial – e levando-se em consideração a convergência de interesses que unem essas duas instituições – aconselho uma parceria mútua entre jornalistas e promotores nas demandas de maior complexidade. Fiz isso várias vezes e sempre fui muito bem sucedido, prova é que nunca fui condenado por crime de dano moral em 42 anos de reportagens investigativas.
Recentemente, fechei um acordo com a promotora eleitoral da comarca de Nova Lima, MG, Ivana Andrade, que vem fazendo um extraordinário trabalho de prevenção contra a compra de votos na comarca, inclusive com a mobilização dos estudantes secundaristas através de palestras em escolas, concurso de redação sobre o tema e outras ações muito bem elaboradas e que terão, certamente, excelentes resultados nas urnas. Coloquei o jornal à disposição do MP e criamos um canal direto para troca de informações.
Esse mesmo tipo de parceria, fiz no passado em Brasília com diversos promotores e também em Belo Horizonte – um deles com o atual secretário de Estado de Defesa Social, Rômulo Ferraz, durante a investigação da Máfia do Carvão (1998). Atuei também dentro da Coordenadoria de Combate ao Crime Organizado, fornecendo e recebendo informações para reprimir os caça-níqueis e bingos na capital mineira no final da década de 90, de forma compartilhada e segura.
A defesa do interesse público
Esta é, por certo, uma via mão dupla, porque deve também o promotor buscar essa parceria com a imprensa. Talvez se o promotor Francisco do Rego tivesse tido uma contrapartida dos jornalistas na investigação da fraude nos combustíveis em 2002, o desfecho desse trabalho seria outro. Ninguém me tira da cabeça que o seu matador não agiu apenas pensando em vingança, mas na possibilidade de encerrar as investigações, já que o promotor estava praticamente viúvo nas investigações. A verdade é que a imprensa furtou-se ao seu papel de algoz do bandido ao apenas reproduzir o que Francisco do Rego dizia e isso alimentou o ódio do criminoso que via no promotor um perseguidor implacável e único e decidiu matá-lo, como se isso fosse o suficiente para acobertar as fraudes.
Em situação inversa, porém parecida, o meu colega Mário Eugênio, repórter do Correio Braziliense, também foi executado em 1984 em praça pública, em Brasília, porque denunciava sozinho a existência do Esquadrão da Morte, sem buscar uma parceria com o MP. Foi, também, vítima de uma pretensa queima de arquivo. Todos os envolvidos no assassinato covarde do repórter e do promotor foram condenados, mas já estão em liberdade. O que atirou no repórter demorou 16 anos para ser preso.
Portanto, é preciso que haja uma união de forças entre o Ministério Público e a imprensa, como enaltece o procurador Alceu Torres no episódio da consolidação da democracia logo após o regime militar, para que promotores e jornalistas possam atuar com mais segurança e tranquilidade na defesa do interesse público.
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[José Cleves é jornalista, Belo Horizonte, MG]