O quinto é o mais conhecido e famoso dos 250 artigos originais da Constituição brasileira de 1988. Não é para menos: o artigo se espraia por 34 itens (sem contar os parágrafos) para poder regular em minúcias os “direitos e deveres individuais e coletivos”. Não deve haver similar na história constitucional do Brasil. Nem em qualquer outra carta de direitos da história mundial.
A inusitada verbosidade se justificaria. Afinal, depois de duas décadas de regime político de exceção, a nova constituição inaugurava um novo tempo, o do exercício pleno da cidadania.
A novidade, porém, passado quase um quarto de século, traz consigo inquietude e perplexidade. Nunca os brasileiros viveram mais tempo sob democracia republicana do que agora.
Mas nunca, nem quando das interrupções ditatoriais, houve tantas ações na justiça contra a atividade da imprensa quanto durante esta VII República. Certamente esse recorde tem a ver com a excepcional proteção estatal aos direitos individuais. O texto constitucional criou novos mecanismos de tutela às noções de honra e à autoestima das pessoas. Elas se julgaram autorizadas e legitimadas a reagir qusnfo consideram violados esses direitos.
Isso foi bom. Mas logo o exagero levou ao oposto. Enquanto nos Estados Unidos publicam-se sem parar biografias de personalidades públicas, no Brasil esse gênero literário começou a sofrer obstáculos e proibições intransponíveis. O caso mais dramático foi a biografia do cantor e compositor Roberto Carlos. Depois de ir às ruas e fazer sucesso (inclusive de crítica), os livros foram recolhidos e simplesmente destruídos.
A repressão atingiu a imprensa periódica como jamais aconteceu, exceto em ditaduras. O mais grave é que o bloqueio à divulgação de informações tem se baseado em decisões judiciais cada vez mais frequentes. O exemplo mais preocupante é o do jornal O Estado de S. Paulo, proibido de divulgar informações que desagradaram ao ex-presidente da república e presidente do Senado, José Sarney.
Censura togada
A questão de fundo nesses casos é definir até onde vão os direitos da personalidade e onde começam os interesses coletivos. Formulada dessa maneira, a questão cria uma precedência e prevalência da dimensão individual sobre a coisa pública. Nos delitos alegados contra a honra, a subjetividade chega a ser absoluta. Basta a pessoa enunciar a ofensa sentida para que o crime esteja configurado, como aconteceu com Roberto Carlos.
Milhões de palavras já foram gastas para estabelecer limites, mas eles são muito mais claros do que toda discussão aristotélica. Não há dúvida, nas mais duradouras e sólidas democracias, que o interesse público deve prevalecer. Ou não há liberdade de imprensa de verdade.
Como é amplamente conhecido, Thomas Jefferson tomou a iniciativa de redigir a primeira emenda à constituição dos Estados Unidos (vigente até hoje) para aplacar seu temor sobre a preponderância do governo. No Brasil, as leis de imprensa são baixadas para cercear a liberdade de informação, não para protegê-la.
O poder judiciário deve repensar urgentemente seus julgados.
Seria fundamental para a democracia que as pessoas não fossem às barras dos tribunais antes de esgotar a via administrativa. Deviam primeiro tentar esclarecer a questão através do direito de resposta, submetendo o contencioso à opinião pública.
Mas se suas cartas não fossem publicadas (e na íntegra), em espaço equivalente ao da notícia contestada, a recusa da empresa jornalística já caracterizaria crime, punido de pronto na parte mais sensível do corpo humano: o bolso.
A imprensa deixaria de vilipendiar quem por ela se sente ofendido. E se evitaria dar aos cidadãos com excesso de suscetibilidades pessoais ou exorbitando seus poderes o que nem os ditadores, de armas na mão, conseguiram: a censura à imprensa – e por ordem judicial. Democracia alguma convive com essa anomalia por muito tempo. O tempo dessa incongruência já se tornou demasiado no Brasil democrático dos nossos dias.
Sem diálogo
Temos um caso no Pará que comprova essas considerações gerais, que fiz, em artigo publicado no número mais recente da revista Diálogo, da Souza Cruz. Em 2007 Maria de Nazaré Falcão Valente pediu direito de resposta ao Diário do Pará. Como não foi atendida, recorreu à justiça. Só cinco anos depois, no mês passado, conseguiu ver a sua resposta atendida pelo jornal. Sustentou como inverídicas as acusações que lhe foram feitas como servidora pública. Depois de reproduzir a carta, cumprindo a sentença judicial, o jornal não voltou mais ao assunto. Sinal de que estava errado, mas não queria admitir.
Essa atitude de obstinada intolerância e incoerente rejeição ao diálogo é o que sempre serve de justificativa aos impulsos dos poderosos pelo controle ou censura da imprensa. Um erro levando a outro erro, ainda mais grave. Por que não corrigir de verdade um para não dar pretexto ao outro? Com a palavra, a grande imprensa.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]