Candidato a vereador, um anão lamenta – no site Globo.com – não ter sido eleito: “Dos males, preferiram os maiores”. No jornal O Globo, o historiador José Murilo de Carvalho apresenta uma lista de candidatos a vereador no município, convidando o leitor a decifrá-la: “A Loira da Pipoca, Valdir do Bar Pão com Ovo, Arlindo Palhaço Seboso, Mano Dirigindo a Lutas, Surdinha da Justiça, Charles Henriquepedia, Alceudispor, Saracutaco, Bocão, Lecão, Bodão, China Estamos Juntos, Tia Rosa do Kiosque, Fc-rio, Dudu Bodinho, Germanu Golden Boy” e outros.
Os nomes que transcrevemos foram colhidos ao acaso, porque a lista é enorme, e cada um dos candidatos identifica-se dessa forma, digamos, abstrusa. Ou grotesca.
Sobre o grotesco como categoria estética recorrente na vida brasileira (e não apenas no mundo do espetáculo), pudemos escrever vários textos, sob forma de artigos ou de livros. No mais recente, que data de dez anos atrás (O Império do Grotesco, com Raquel Paiva, Editora Mauad), citamos Monteiro Lobato, diante da hipótese de retorno ao Brasil, após uma estada de quatro anos nos Estados Unidos:
“Por mim, não sairia mais daqui, porque o Brasil torna-se grotesco visto de longe. Infelizmente, a família é um cordão umbilical que me prende a essa cataplasma. Só agora meço em extensão o atraso infinito, e a estupidez maior ainda, da nossa gente. Somos África pura”.
Estruturas corroídas
Não é aqui o momento de colocar em exame a visão rasteira e preconceituosa de Lobato, mas de retomar a ideia de ligação do grotesco com o Brasil, para acentuar um de seus aspectos, cada vez mais presente nas campanhas eleitorais, que é o da bufonaria ou palhaçada. No nosso livro mencionado, destacamos a figura do bufão como um exemplo clássico da dramaturgia: o bufão da corte do Rei Lear, de Shakespeare, ridículo e engraçado com a sua ostentada culhoneira (cod-piece), já que naquela época os guerreiros não mais usavam aqueles pontudos protetores genitais. Comentávamos que “a exibição desse anacronismo é, ao mesmo tempo, cômica e crítica, porque expõe a convenção cerimoniosa que cerca o uso da peça protetora e chama a atenção, grotescamente, para a parte baixa do corpo”.
O bufão é a inversão do rei, assim como o grotesco é o belo de cabeça para baixo. Se no século 19 esse fenômeno é apresentado ao mundo culto como “categoria estética”, o grande Victor Hugo não deixa de assinalar (no prefácio de sua peça Cromwell) que a forma grotesca “existe na natureza e no mundo à nossa volta”. De fato, pelo ridículo ou pela estranheza, o grotesco pode fazer descer ao chão tudo que a ideia eleva alto demais. E mais: o grotesco pode tornar-se de fato uma radiografia inquietante, surpreendente, às vezes risonha, do real.
O que poderia “radiografar” a lista de nomes abstrusos dos candidatos a vereador? Em primeiro lugar, o grau zero da representação política. Isso significa dizer que de certo modo o poder político está moribundo, quando se entende poder como forma legítima do político. Como se sabe, o fenômeno moderno do poder apresenta-se como o traço de união entre o Estado enquanto monopólio legítimo da força e a política como movimento contraditório (confronto de interesses e ideias em torno do princípio da representatividade) de formação, distribuição e exercício de uma soberania. Quando se fala modernamente de poder, as referências visam, portanto, os aparatos de Estado, o ordenamento jurídico e as construções ideológicas.
Este tipo de poder, que remete em última análise à soberania do povo ou da sociedade civil, não está mais por inteiro na classe política, mas em outro lugar, fora dos controles republicanos: as grandes corporações, os governos do “Norte” e os organismos financeiros mundiais, diretamente conectados com as oligarquias nacionais do mando, os estamentos que cooptam lideranças políticas e tecnoburocráticas. Não raro, uma coalizão dita “de esquerda” chega ao poder para descobrir que, simplesmente, ele não mais está lá onde se esperava, a exemplo do socialista François Mitterrand, na França (1981).
Para o cientista político americano Michael Hardt são várias as evidências do estiolamento da sociedade civil – conceito que, entretanto, tem servido para a sustentação de diferentes posições políticas em países de todo o mundo, como uma espécie de atributo essencial de qualquer democracia, por indicar a infraestrutura institucional de mediação política e negociação pública. A argumentação parte da premissa de que essas estruturas, dependentes das funções de disciplina (ideologia) e exploração do trabalho (economia), estariam sendo corroídas ou esvaziadas nas formações sociais contemporâneas. Estaríamos hoje fazendo a experiência de uma sociedade “pós-civil”, que traz em seu bojo um novo paradigma de relações sociais.
“Razão” política
Na verdade, já o grande teórico socialista Antonio Gramsci tentara demonstrar a crise das instituições que formam a espinha dorsal da sociedade civil e, portanto, a crise de seus potenciais democráticos. Gramsci definira como finalidade de toda atividade política a criação de condições para a expansão da sociedade civil que, depois de conquistar o poder em separado da sociedade política, se transformaria em “sociedade regulada”, isto é, autodeterminada e eticamente motivada. Nesta eventualidade, desapareceriam o Estado, os partidos e própria política.
O que Hardt sugere é que tais instituições já entraram em colapso sem que tivesse advindo qualquer “sociedade regulada”, e sim a crise permanente do Estado e seus aparatos, devido a uma nova configuração do trabalho, acompanhada da decomposição das formas tradicionais de representação política. Este fenômeno responderia pelo mal-estar generalizado de uma cidadania que não mais reconhece os tradicionais contextos de confiança e experimenta a vertigem de sua própria fragmentação pelo mercado.
Para a grande massa, isso ainda não é perfeitamente visível nas esferas superiores da classe política, onde ainda tem alguma força o imaginário do poder. Quanto mais alto é o nível do cargo político (presidente da República, presidente da Câmara etc.), maior é nele o investimento imaginário das massas, crentes summa potestas ou supremo poder de mando dos dirigentes. A prática da “pequena política”, entretanto, é uma miríade de negociações para assegurar a governabilidade entre partidos que giram burocraticamente ao redor de seus próprios interesses. Esse “poder negociador” assegura o pagamento da dívida externa e reprodução da classe política, mas já não representa nenhuma soberania popular, razão pela qual prescinde de projetos nacionais, de grandes ideias de transformação.
Ora, se isso é verdadeiro para o Executivo e o Legislativo federais, o que resta realmente para a esfera municipal? Em princípio, deveria restar muito, pois é sobre o local que incidem os efeitos das macrodecisões federais. Na prática, porém, o prefeito geralmente consegue concentrar poderes gestionários e reservar para o Legislativo a miudeza das pequenas negociações, onde parece realmente não se fazer necessária a presença de ideias, argumentos e debates. Cada candidato a vereador tende a definir-se por aquilo faz profissionalmente no seu cotidiano – Loira da Pipoca, Anselmo da Farmácia, Zezé da Saúde, Joca da Quitanda etc. – e não pelo que poderia fazer dentro do “poder” municipal. Não existe de fato “razão” política para a candidatura. E é a razão arranhada que dá lugar ao abstruso, à graça sem muita graça – ao grotesco. Ao eleitor, como bem viu o anão-candidato, resta decidir entre males maiores e menores.
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[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade do Rio de Janeiro]