Após mais de 60 dias de greve, muito foi divulgado na imprensa a respeito do movimento paredista de escrivães, papiloscopistas e agentes da Polícia Federal, intitulados pelo próprio grupo como “EPAs”. Talvez pela coincidência com outras reivindicações de outras carreiras de servidores públicos, o enfoque da maioria das reportagens foram os transtornos à população e pleitos por melhores salários, sem aprofundamento sobre as pretensões dos policiais federais. Foram raras as exceções, como o artigo “Greve por mais eficiência no setor público”, de José Roberto Ferro (Época Negócios, 24/09/12).
A greve tem como principal reivindicação o reconhecimento de nível superior da carreira de agentes, escrivães e papiloscopistas, já previsto na Lei nº 9.266/96 e admitido pelo próprio Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), mas colocou em pauta problemas estruturais da Polícia Federal. É emblemático que a bandeira da greve, uma das mais longas na corporação, tenha adotado o lema “SOS Polícia Federal”. Além da valorização profissional, os policiais federais em greve estão discutindo a própria instituição. Desde o início, policiais federais e seus representantes sindicais tentam manter as manifestações públicas, nos termos estabelecidos por decisões judiciais que, apesar de impor limite, reconheceram a legalidade da greve.
O entendimento do ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi neste sentido: “Indubitável a legitimidade do pleito dos policiais federais por vencimentos adequados às essenciais funções exercidas, o que se afigura imprescindível para garantir a atratividade da carreira e uma bem-sucedida política de recrutamento, de modo a selecionar os melhores candidatos. Em outras palavras, mais do que um pleito corporativo, é do interesse da própria sociedade e do Estado brasileiro que seus policiais federais tenham remuneração satisfatória.”
Privilégios ameaçam ruir
Após mais de dois meses, auditórios de sindicatos se tornaram centros de debates sobre os problemas estruturais e de gestão da PF. Os ânimos se acirraram quando dirigentes do órgão e delegados, colegas de trabalho dos policiais federais em greve, viraram as costas para a categoria, talvez com receio de que a visibilidade na mídia escancarasse o modelo arcaico da respeitada Polícia Federal. Os gestores tentam abafar o pedido de socorro dos policiais federais por reconhecimento e valorização profissional, mas também por maior eficiência do serviço. O mantra da “hierarquia e disciplina” não conseguiu sufocar a ideia amadurecida pelos policiais federais em prol da mudança no interior da PF.
No combate à corrupção, em centenas de ações de inteligência policial em todo o país, os federais conheceram os meandros do Estado, suas vicissitudes e a necessidade de modernizar a Polícia Federal para equilibrar o jogo, aparentemente perdido, contra a corrupção e o crime organizado. Neste sentido, a polícia federal, que é polícia civil e cidadã, deve estar cada vez mais distante da militarização, pois a hierarquia e disciplina que impera no meio militar é bem diferente da que deve orientar as polícias civis. Nestas, somente se sustentam hierarquia e disciplina voltadas para a finalidade pública, que no caso é a prestação eficiente da segurança pública, dentro dos ditames constitucionais. Não é à toa que, recentemente, o secretário de Defesa dos Estados Unidos, Leon Panetta, alertou aos países da América Latina para que não deem a função de polícia a forças militares. A mensagem foi de que as autoridades civis devem ser fortalecidas para lidar com a defesa das leis.
As polícias civis, nos últimos anos, tanto a PF quantos as estaduais, passaram a atrair para seus quadros profissionais das mais diversas áreas do conhecimento acadêmico. São esses policiais federais, com visão crítica, formados em renomadas universidades, que estão encarando o desafio de olhar para dentro do castelo de areia da segurança pública. Conceitos corporativistas e privilégios de castas ameaçam ruir. Hoje já não parece aceitável que a mesma estrutura das polícias do Brasil Império ainda persista na nação que almeja posição de destaque entre as potências mundiais.
Papel fundamental
A discussão sobre o atual modelo de segurança pública não inviabiliza (ao contrário, completa) a principal reivindicação dos policiais federais pelo reconhecimento das atribuições de nível superior da carreira. Sem dúvida, o nível do debate já credenciou os policiais grevistas. Numa instituição dirigida por delegados, todos formados em Direito e muitos refratários à valorização profissional na carreira da própria instituição, era previsível a resistência à ideia de que as ciências jurídicas (em que pese a tradição) não sejam superiores às demais áreas acadêmicas.
A estrutura de polícia foi herdada de outra época, com os vícios do bacharelismo. Os avanços tecnológicos e a crescente sofisticação das organizações criminosas se encarregarão de mostrar que atividade policial deve ser, sobretudo, de investigação e natureza multidisciplinar. Já está ultrapassada a visão de que a investigação policial é atividade natureza intermediária. Com o auxílio da tecnologia e do conhecimento científico dos variados ramos, o fazer policial vai se afirmando como atividade interdisciplinar, tão aprofundada quanto forem as inteligências envolvidas em seu labor. Vale lembrar que o aprimoramento das investigações resultará em denúncias mais consistentes pelo Ministério Público e ações penais mais eficazes, lastreadas na atividade policial.
Esta greve dos policiais federais, apesar dos transtornos à população e a redução de prisões nas estatísticas oficiais, poderá trazer ganhos para segurança pública no Brasil. As autoridades mais atentas talvez percebam que uma instituição sufocada pelo excesso de atribuições e pelo arcaísmo da estrutura está tentando respirar. A mídia tem um papel fundamental de esclarecimento, discussão e aprofundamento deste tema, que extrapola interesses corporativistas e resvala no interesse público de uma Polícia Federal mais moderna e eficiente.
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[Johnny Wilson Batista Guimarães é escrivão de Polícia Federal, bacharel em Direito e pós-graduado em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera]