Escrevo mensalmente em um jornal jurídico, o que faz tempo são narrativas indignadas acerca da distância entre o Direito que aparece nas leis e em nosso Judiciário e aquilo que se vê nas ruas. O direito dos papéis é muito parecido com o presente no julgamento do mensalão, e seria mesmo ideal que os cidadãos como um todo pudessem contratar advogados que começam seu discurso na tribuna do Supremo dizendo que foram os responsáveis por determinar ao então Presidente da República a nomeação do próprio acusador.
Mas esse canto de sereia do julgamento das Altas Cortes, que conheço razoavelmente bem, não pode atrair toda a atenção de um professor de Direito Penal da rede pública. Por isso não é incomum que eu entrave passeios pela Baixada do Glicério para observar o movimento do tráfico às barbas do Tribunal de Justiça e do 1º Distrito Policial de São Paulo, ou à noite na Praça da República apenas para escutar a gíria, a sonoridade da linguagem e algumas experiências, por assim dizer, de hiperrealismo. À periferia vou muito raramente.
Mas uma tarde dessas um ex-cliente e agora amigo me ligou para dizer que lá na Zona Sul paulistana a polícia estava matando – e muito. Coisa que eu já sabia, mas como tinha tempo disponível atendi ao convite velado, tomei o metrô que agora chega ao ponto maquiado do bairro e ficamos ali perto, em uma lanchonete, porque ele queria me falar das novidades. Sua principal vontade era narrar que havia morto um amigo que tinha sido também meu cliente quando eu era recém-formado, mas eu não me lembro dele. Claro que aproveitei para questionar a fundo acerca dos motivos daquelas mortes, e sua resposta foi muito além de o que eu esperava.
Começa com uma possível declaração de guerra da Rota contra os policiais corruptos, que morrem porque estão comprometidos com o crime organizado “mas já não conseguem segurar a bronca”, porém se aprofundou (meu ex-cliente fala muito bem) com a revolta dos moradores que não gostam de bandidos, mas odeiam o destrato total das autoridades, bem como o esquema de pagamento para polícia, para o comando, a forma de arrecadação de irmãos e primos, e disciplinas, e armeiros, e outros nomes que o crime conseguiu alçar como instituição, com hierarquia e algum saber litúrgico.
Clamor popular
Aproveitei o diálogo para transcrevê-lo no tal jornal jurídico, sem qualquer compromisso com qualidade das fontes, perguntando-me por que nenhum meio de imprensa até hoje levantou detalhadamente essa história, a partir de personagens e fatos que seriam tão facilmente identificados. Com nomes e identidade.
A resposta me veio do modo que eu menos queria, como uma dessas neuras que tiram o sono à noite, tanto que tive de, na madrugada, alterar o tal texto, para que a narrativa do crime organizado ficasse muito mais velada.
Fui acometido de um medo agudo de ser vítima da repressão disciplinar por falar dele demais, mesmo em um jornal jurídico, e não era eu mesmo que escrevia que a tal facção criminosa estava capilarizada a ponto de atingir postos de poder, dentre os quais se destacariam vários bacharéis que, se hoje são os intelectualmente limitados, no futuro podem ser os grandes governantes?
Para evitar novo arrependimento, desvio o rumo deste texto para o tema que aqui nos interessa: a liberdade material, real, da imprensa na cobertura da criminalidade violenta, e as implicações dela, sob minha ótica, para o Direito penal.
Como jurista (palavra pretensiosa demais, convencida demais), sou obrigado a pontuar que a liberdade de imprensa tem um fim em si mesma. Então, encontrar para ela uma função, ainda que seja uma função a mais, importa adotar uma premissa constritora, que não é a minha. Aqui é, portanto, mais exato dizer que uma relevante consequência da liberdade de imprensa é a persecução eficaz à criminalidade.
Voltando ao caso do mensalão, ficará evidente que a livre cobertura da imprensa fora determinante ao resultado do julgamento: embora eu não concorde com quem diga que a decisão condenatória foi eminentemente política, essa questão é lateral. Importa notar que, ao comentar o mensalão, fomos livres para tudo: investigar passado dos juízes, apontar corrupção ao menos moral, fazer algumas charges engraçadas e muitas sem graça, todas parcialmente à custa da honra de alguém, enaltecer o resultado condenatório. Tudo isso diluiu-se em uma ampla abertura que colocou a sociedade no encalço dos julgadores, portanto alerta a eventual pacto de silêncio e tolerância.
É esse tal pacto que o crime violento pôde a seu modo concretizar, tanto que, creio, não está levantado como pauta primeira do jornalismo investigativo, que, diz o próprio Observatório da Imprensa, é a coluna vertebral da profissão.
As pautas produzidas acerca da guerra do crime apontam apenas números, cenas esparsas e esquemas genéricos. E as notícias televisivas – se me permitem dizê-lo – assim divulgadas servem apenas como mais um daqueles vídeos que o próprio crime organizado fabrica para evidenciar sua força, porém com repercussão muito mais garantida. A investigação que poderia levar ao clamor popular, único que alerta as autoridades para a urgência dos problemas e, principalmente, para a necessidade de depurar sua própria corrupção, é assombrada pelo fantasma de Tim Lopes, talvez o mesmo que me causara aquela insônia.
Direito estéril
Serve de analogia o exemplo espanhol, caso paradigmático que acompanho há tempos, embora os irmãos da Península não sejam amaldiçoados com nossa cancerígena cordialidade. A firmeza do governo hispânico para enfrentar o terrorismo ultranacionalista do ETA continuou até alcançar, se não o estrangulamento, o controle dessa criminalidade para muito além dos limites temporais do franquismo. O que parecia uma das tantas lendas das décadas ditatoriais – os “subversivos”, na visão do caudilho Francisco Franco – na verdade era uma insatisfação dos cidadãos para com as ações violentas como um todo. Tanto é assim que abrem diálogo ao separatismo, tanto basco como catalão, se distante das armas.
No caso espanhol, os jornalistas saberão dizer melhor do que eu o papel da imprensa em noticiar ataques, em dar voz a políticos e filósofos que denunciavam extorsões e ameaças, em indicar constantemente desde os intrincados problemas de gênese na intelectualidade – com o apoio de colunistas e escritores – até a meter-se na guerrilha ideológica, alcançando os menos ilustrados com frases como “matar sí que es muy feo”.
O campo para debates sobre a estratégia da responsabilidade de todos os súditos do Estado para enfrentar essa criminalidade brasileira é muito amplo. Apenas me cabe dizer que, sem a investigação da opinião pública e o enfrentamento intelectual diário – da esquerda à direita – da ideologia violenta, o Direito Penal é estéril. Ele só pode começar a ser aplicado a partir de um fomento de senso de responsabilidade pelo estado de coisas, mas este, repito, depende fundamentalmente de jornalistas e escritores.
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[Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de Direito Penal da Universidade de São Paulo – FDRP, autor de O Ensaio como Tese: estética e narrativa na composição do texto científico (Editora Martins Fontes), dentre outros]