Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

“Me sinto uma diplomata do povo”

A blogueira cubana e colunista do Estado de S.Paulo Yoani Sánchez afirma ter tentado autorizações para deixar seu país desde 2008. Por 20 vezes, teve a permissão negada. Ela acredita que, com a flexibilização na lei migratória de Cuba conseguirá vir ao Brasil, onde planeja chegar no dia 18, para participar do lançamento da nova edição de seu livro De Cuba, com Carinho (Editora Contexto), em São Paulo, e da exibição do documentário Conexão Cuba Honduras, do cineasta Dado Galvão, na Bahia. A seguir, a íntegra entrevista concedida ao Estado.

Como a sra. recebeu o anúncio da alteração da Lei de Migração cubana?

Yoani Sánchez – A primeira sensação, em outubro, quando se anunciou a reforma migratória, foi uma mistura de esperança e ceticismo. Esperança porque, durante muitos anos, nós, cubanos, havíamos esperado flexibilizações para poder entrar e sair de nosso próprio país. O absurdo migratório cubano havia condenado muitas famílias à separação: muitos pais que não tinham voltado mais para ver os seus filhos, muitos avós que nunca conheceram os seus netos. Ou seja, havia um drama familiar humano acumulado por décadas. Então, havia muita esperança de que esse drama terminasse, que chegasse ao fim algum dia. Ceticismo porque, em geral, sempre temos muita desconfiança e muito receio de tudo o que vem do governo. A maioria dos cubanos sempre está se perguntando: “Onde está a armadilha?” Essas foram as primeiras sensações quando do anúncio da lei.

Quais as suas impressões ao ter acesso à íntegra do texto?

Y.S. – Quando comecei a ler o decreto, vi muitos pontos positivos. Por exemplo, que diminuíram os trâmites necessários para viajar, reduziram os custos, passaram a permitir que saíssemos por até 24 meses sem perder o direito a regressar, permitiram a saída a menores…

Mas?

Y.S. – Mas, ao mesmo tempo, também li alguns pontos, que podem ser chamados de “letras pequenas” da reforma migratória, que são algumas restrições que se mantêm sobre, por exemplo, os profissionais de certo nível e os esportistas de alto rendimento. E também há casos que podem ser interpretados como uma certa pena ideológica, ou seja, um cerco político contra opositores, dissidentes ou jornalistas independentes.

Dois artigos da lei determinam isso, não?

Y.S. – Exato: o artigo 23 e o artigo 25, nos incisos H, dizem que uma pessoa pode não obter o passaporte ou não poder sair pelas fronteiras nacionais se as autoridades pensam que não é de interesse público sua viagem. Isso, claro, tem uma interpretação muito ampla e pode ser usado como penalização política, contra críticos, opositores e jornalistas independentes.

Desde o anúncio da reforma, o que mudou?

Y.S. – Durante os três meses entre o anúncio da lei e sua aplicação, houve muitos rumores sobre como seria interpretada essa série de restrições, essas “letras pequenas”.

Seu passaporte não tinha folhas suficientes para novos vistos e, por este motivo, a senhora teve que obter um documento novo para poder viajar. Como foi esse processo?

Y.S. – Vinte e quatro horas antes do dia 14 de janeiro (quando passou a vigorar a nova legislação migratória), meu marido (o dissidente Reinaldo Escobar) e eu começamos a fazer fila diante do escritório de migração (de El Vedado, no centro de Havana). Esperamos toda a madrugada e fomos as primeiras pessoas que solicitaram, sob a nova lei, o passaporte no escritório de nossa região.

Como foi?

Y.S. – Foi um momento muito duro para os funcionários desse escritório, porque eles eram os mesmos funcionários que semanas e meses antes haviam estado negando-me a possibilidade de viajar e dizendo-me que eu não estava autorizada a sair do país. Então, quando abriram as portas do escritório pela primeira vez com a nova lei em vigor, encontraram justamente Yoani Sánchez e seu marido, Reinaldo Escobar. Deve ter sido uma sensação muito difícil, não?

Os documentos ficaram prontos no prazo?

Y.S. – Solicitei o passaporte e disseram que eu deveria esperar duas semanas. Duas semanas depois, fui lá – e começaram as evasivas. Evasivas como: “há uma atraso”, “os passaportes não chegaram”, “ainda não estão prontos”, “venham em alguns dias”, “venham na próxima semana”. Mas denunciei o atraso por meio da rede social Twitter e, para a minha surpresa, uma tarde me chamaram em minha casa para dizer que meu passaporte estava pronto. Isso é muito raro, porque, normalmente, o Ministério do Interior cubano nunca chama um cidadão para dar-lhe boas notícias. Assim que foi uma surpresa para mim me chamarem para dizer “seu passaporte está pronto”.

E agora?

Y.S. – Agora já tenho o passaporte na mão, já tenho o visto do Brasil, já tenho o visto da Europa e estou esperando o visto dos EUA e de alguns outros países da América Latina.

Como a sra. se sentia cada vez que o governo lhe negava autorizações de saída para o exterior?

Y.S. – Era muito frustrante. Não somente pela impossibilidade de viajar. Por um lado, porque cada negativa significava que eu perdia uma experiência pessoal e profissional importante para a minha vida. Por exemplo, não me deixavam viajar para uma feira de livro para ir apresentar meu livro Cuba Livre ou De Cuba, com Carinho; ou não me deixavam ir a alguma cerimônia de algum prêmio que eu tivesse ganhado. Eram partes da minha vida, de minhas histórias pessoais e profissionais que o governo me arrancava, me escamoteava. Era uma sensação de muita frustração.

Mas e a esperança?

Y.S. – Havia. Eu tinha a convicção interior de que algum dia ia conseguir viajar. Isso me dava paciência para continuar tentando. E ainda, mais, eu sentia que tinha razão. Ou seja, era uma situação em que eu sabia que estava demandando algo que tinha que ser um direito, um direito pelo simples fato de ter nascido nesse país. Então, as funcionárias que me davam as negativas sempre faziam um papel de difícil, o papel repressor, o papel da pessoa que tem de limitar o movimento de um cidadão. Acho que isso me abriu as portas para insistir: a consciência de que tanto absurdo tinha que terminar.

A sra. já viveu no exterior. Desde quando vinha pedindo autorizações para sair novamente?

Y.S. – Em 2004, voltei da Suíça, estive vivendo dois anos no exterior. Criei meu blog (Generación Y) em 2007. Comecei a pedir permissão para viajar em maio de 2008, quando ganhei o Prêmio Ortega e Gasset de Jornalismo (concedido pelo jornal espanhol El País, que atualmente mantém Yoani como correspondente e articulista em Havana). Basicamente, foram cinco anos de batalha legal para poder sair do país. Uma batalha legal que me levou até a fazer uma queixa à promotoria geral. Ou seja, esgotei todos os caminhos legais dentro de meu país. Não fiquei com os braços cruzados. Não somente continuei com meus pedidos mas, ainda mais, fiz tudo o que legalmente estava ao meu alcance.

Qual é o principal motivo para que os dissidentes deixem Cuba?

Y.S. – Essa é uma magnífica oportunidade para a dissidência cubana. E espero, tenho a esperança, de que vamos aproveitá-la. Temos de nos dar conta que há uma nova etapa, uma nova época que começa. Uma fase em que poderemos aceder aos microfones do mundo para explicar nossos projetos. Explicar também todos esses programas, ideias e propostas para o futuro que temos para o nosso país.

Como Havana utilizou a restrição anterior para que seus cidadãos não pudessem deixar o país?

Y.S. – O governo cubano aproveitou que nós não podíamos sair da ilha para aumentar as campanhas de desprestígio, difamação e mentiras ao redor de muitas figuras da oposição, do jornalismo independente. Como eu, não? Então, acho que agora temos a grande possibilidade de falar com nossa própria voz, narrando nós mesmos, e eliminar muitas dessas campanhas de difamação com nossas verdades, com nossa própria projeção. Isso é muito importante porque o mundo tem de saber que Cuba é plural e diversa, que tem muita gente que ama seu país, mas não está de acordo com o governo. Essa é a grande responsabilidade que eu sinto que tenho nos ombros agora no Brasil. Sinto que tenho o dever de falar por muitos outros (opositores cubanos) que não vão poder sair por uma razão ou por outra: uma negativa no passaporte ou porque não tenham os recursos ou porque agora mesmo não possam viajar por questões familiares e pessoais. Sinto a responsabilidade de ter também que falar em nome deles.

Como lhe surgiu a ideia de vir ao Brasil?

Y.S. – A ideia do Brasil é um sonho muito desejado. Começou com a publicação de meu livro De Cuba, com Carinho, por meio de Jaime Pinsky, da Editora Contexto. Naquele momento, me surpreendeu muito que, em um país tão próximo culturalmente mas tão distante em outras circunstâncias, houvesse gente que lesse meus textos e estivesse entusiasmada com meu blog. Também houve uma entrevista que depois de converteu em um livro. Isso foi me revelando um mundo que me apaixonou. Um mundo de muitas pessoas nesse país que estavam interessadas no tema Cuba. Tanta gente interessada nessa pequena ilha. Desde esse momento, soube que tinha que ir ao Brasil. Depois, apareceu o documentário de Dado Galvão (Conexão Cuba Honduras) e toda a tentativa que ele e o senador (Eduardo) Suplicy, muitos amigos e gente que me lê por meio da rede social Twitter, me pedindo que lhes visitasse… E eu senti que, se tinha que chegar primeiro a algum país, se em algum primeiro lugar teria que dar esses abraços vindos de Cuba, teria que ser irremediavelmente o Brasil.

O que a senhora pretende fazer enquanto esteja no País?

Y.S. – Pretendo aprender. Mais do que narrar ou falar, quero beber de vocês, quero aprender de vocês. Em primeiro lugar, como se constrói uma democracia, como se sai de um autoritarismo e se começa a dar os primeiros passos à aceitação, à pluralidade, à diversidade. Quero aprender também como fazer um jornalismo mais livre, um jornalismo sem autocensura e sem censura, sobre a responsabilidade da informação. Quero caminhar muito pelas ruas das cidades e dos vilarejos do Brasil, perguntar às pessoas quais são os seus problemas, quais são as grandes vantagens que veem em viver aí. Quero fazer contatos profissionais também, porque não quero que essa seja minha última viagem ao Brasil de jeito nenhum. Tenho a esperança de estabelecer relações de amizade, relações de trabalho, relações de simpatia de povo a povo que serão muito duradouras. Vou também em um caráter de “diplomata do povo”. Nenhuma chancelaria me nomeou, nenhum palácio de governo me reconhece como representante de nada, mas sinto que devo ajudar a estreitar os vínculos entre uma nação e outra. Sou uma representante da diplomacia popular. Uma diplomacia que não ocorre em nível de governo nem de chancelaria, nem que faz cartas de intenção ou memorandos, mas uma diplomacia que se faz de você a você.

Que tipo de apoio a senhora espera obter no Brasil?

Y.S. – O apoio principal é que tenham a capacidade de me escutar. Esse é o ponto. Se tiverem a capacidade de me escutar, sobre todas as histórias dessa Cuba diversa, plural, em mudança, uma Cuba com anseios de liberdade, uma Cuba com anseios democráticos. Se os brasileiros forem capazes de me escutar – e creio que sim, há muitos ouvidos atentos – então, já valeu a pena sair. Esse é o principal apoio, a principal ajuda que quero. E também, todas as recomendações e todas as críticas são bem-vindas, porque isso nos ajuda, me ajuda, a fazer um trabalho melhor e ser uma pessoa melhor. Mas também quero criar pontes para outras possíveis viagens de outros ativistas, outros blogueiros, outros jornalistas independentes (cubanos), a quem o Brasil poderia criar uma maneira de descobrir, descobrindo a própria Cuba. Quero criar vínculos também do ponto de vista acadêmico, conhecer muitos estudantes e interagir com pessoas que estejam fazendo jornalismo. Isso é basicamente o que quero.

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[Guilherme Russo, do Estado de S. Paulo]