A definição de um marco regulatório para a área de comunicação no Brasil não representa cerceamento à liberdade de expressão, como alardeiam os grandes grupos de mídia que se opõem à medida, mas um instrumento “para que mais vozes tenham acesso ao debate público”.
É o que pensa um dos principais estudiosos do tema da liberdade de expressão no Brasil, o professor de comunicação e ciência política Venício Lima, da Universidade de Brasília, que encerrou na quarta-feira (20/3), durante o colóquio “Liberdade de Expressão: as várias faces de um desafio“, suas atividades como docente visitante do Departamento de Ciência Política (DCP) da UFMG.
Nesta entrevista ao Portal UFMG, Venício Lima antecipou parte do conteúdo de sua conferência, quando o professor abordou as duas matrizes que fundamentam a ideia de liberdade de expressão no Brasil: a republicana, defendida por ele, e que se baseia nas noções de participação, espaço público e interesse coletivo, e a liberal, centrada na liberdade individual e que refuta toda e qualquer forma de controle externo.
Essa segunda concepção, em sua avaliação, serve de argumento para os grandes conglomerados de mídia “interditarem” o debate sobre a regulamentação dos veículos de comunicação. “Hoje, há liberdade de expressão apenas para alguns grupos, sobretudo para aqueles que controlam os grandes meios de mediação tecnológica e de acesso ao debate público”, analisa.
Como se diferenciam os conceitos de liberdade de expressão nas perspectivas liberal e republicana?
Venício A. de Lima– Não há como entender liberdade de expressão sem que se compreenda o conceito mais amplo de liberdade. Na noção liberal clássica, liberdade é a ausência de restrição externa para a ação individual, um conceito que vem de Thomas Hobbes. Na prática, isso significa algo totalmente centrado no indivíduo, no campo privado. É a perspectiva de liberdade negativa, uma construção que põe o Estado na posição de principal inimigo da liberdade individual. Daí a perspectiva do Estado mínimo, segundo a qual qualquer intervenção – como no caso das políticas públicas, por exemplo – é vista como restrição à liberdade individual.
A visão republicana é oposta. Nela, o que se propõe é uma liberdade construída em conjunto com os outros no espaço democrático. Na pólis grega o homem era livre na medida em que construía a sua liberdade. Era uma liberdade fundamentalmente pública, porque moldada na participação ativa da gestão da coisa pública. É uma ideia de liberdade associada à ideia de autogoverno. Essa é a perspectiva ideal. Já no campo prático, no mundo concreto, isso se resolve por meio da ampliação da participação popular, via mecanismos que possibilitem e fomentem essa participação. E isso é uma tendência no mundo inteiro no que diz respeito à gestão pública. A democracia participativa é, inclusive, uma forma de descentralização administrativa.
Dentro da perspectiva republicana, a liberdade de expressão é absolutamente central à democracia – uma espécie de pré-requisito para a vivência democrática. Se não houver uma opinião pública democrática, se não houver a possibilidade de um espaço público para a representação do conjunto, esse espaço público se corrompe. É o que temos hoje: uma opinião pública corrompida, formada pelos meios de comunicação que representam seus próprios interesses.
Nessa linha, há, entre as perspectivas liberal e republicana, uma tensão entre o privado e o público, entre a liberdade privada e a liberdade pública. A grande questão em pauta é a seguinte: o Estado pode interferir para garantir os direitos? No caso brasileiro, me parece indiscutível que pode – e deve – interferir. E tem interferido, inclusive, no que diz respeito a outras áreas, como a economia. Mas não na área de comunicação. Nesse campo, o assunto nem é discutido.
Por que a retomada dessa perspectiva republicana está vindo à tona neste momento?
V.A.L.– Ela é fruto de uma tradição intelectual em construção na UFMG – e também em outros lugares, como na USP – que me parece inédita, visando ao resgate dessa visão de liberdade. É resultado do trabalho de muitos anos nos campos da filosofia, da história e ciência política, que tem raízes na Grécia antiga, passa pela Roma republicana, ressurge no chamado humanismo cívico do início do Modernismo – com autores como Maquiavel – e se fortalece com o republicanismo inglês do século 17. É o resgate dessa visão de liberdade republicana, já que, na história das ideias, ela foi suplantada pelo liberalismo. Na UFMG, o professor Juarez Guimarães, do DCP, e a Ana Paola, doutoranda em Ciência Política, começaram a se debruçar sobre a questão e viram que o caminho era fazer esse recuo de volta à matriz republicana. Eles inclusive escreveram um livro sobre o assunto, atualmente no prelo.
Mas este esforço de resgate também vem sendo feito sistematicamente em outros países mundo afora, como Inglaterra e Itália. No Brasil, no entanto, existe certo impasse em relação ao debate público desse conceito de liberdade de expressão. O debate é interditado, sobretudo pela grande mídia, apesar de ser fundamental recuperá-lo para identificar as raízes da ideia de liberdade e para mostrar porque, no Brasil, as coisas são como são. A minha presença como professor visitante aqui na UFMG acontece como parte desse movimento. No Brasil, entretanto, como predomina uma visão liberal, que relaciona a liberdade com a ausência de interferência externa, e vê o Estado como o inimigo principal, qualquer tentativa de política pública na área da liberdade de expressão é vista como censura.
Quais as consequências dessa perspectiva liberal e da interdição do debate?
V.A.L.– O resultado é uma visão agônica do que seja opinião pública. Na tradição brasileira, as elites têm um histórico de atribuírem a si mesmas, ao longo das décadas, a autoridade de interpretar o interesse público e de representá-lo. Isso é muito claro, por exemplo, no pensamento de Rui Barbosa e Oliveira Viana. Em várias épocas, podemos perceber intelectuais importantíssimos comungando dessa ideia de que eles eram os responsáveis por interpretar o interesse público. Em vários momentos, como na crise de 64, por exemplo, isso é explicitado em editoriais de jornais. É um cenário em que os jornais, inclusive, disputam a legitimidade da representação pública com os canais institucionais normais, como os partidos, o parlamento.
É um cenário histórico que ajuda a explicar os paradoxos que acontecem no Brasil no que diz respeito à ideia de liberdade de expressão. Hoje temos a absurda situação de grupos e interesses que interditam o debate sobre liberdade de expressão em nome da própria liberdade de expressão. Fazem isso em função dessa visão liberal de liberdade que não admite qualquer tipo de intervenção. Eles empunham a bandeira da liberdade de expressão e são historicamente os grandes responsáveis por interditar a liberdade de expressão coletiva. Falo dos grandes grupos de mídia. Nesse sentido, um outro problema é o equacionamento que se faz entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa.
Na visão republicana, ao contrário, a construção da liberdade passa necessariamente pela existência de um espaço público de participação, de autogoverno. Nessa perspectiva, a liberdade de expressão funciona por meio de mecanismos que garantam a representação dos interesses coletivos no debate público. Para entender isso, nada melhor do que uma visão histórica do que acontece no Brasil. Uma das características mais marcantes da história brasileira é a exclusão, a marginalização, a ausência de voz e de participação de grande parte da população. É aí que entra a ideia do que seja a liberdade republicana: ela é construída junto com os outros e na criação das regras comuns que vão gerir a coisa pública. A liberdade de expressão republicana está associada a uma visão de democracia participativa, de conselhos de comunicação social.
Como o senhor analisa o cenário atual em relação à implantação de marco regulatório para a área de comunicação no Brasil?
V.A.L.– No século 17, o padre Antônio Vieira já dizia que “o pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala”. A grande luta atual por um marco regulatório para a área de comunicação visa criar garantias legais para que mais vozes tenham acesso ao debate público. Ou seja, universalizar, no limite possível, a liberdade de expressão. Hoje, há liberdade de expressão apenas para alguns grupos, sobretudo para aqueles que controlam os grandes meios de mediação tecnológica e de acesso ao debate público. A interdição ao debate é tão grande que ele, quando feito, acontece de forma totalmente desvirtuada. Por exemplo: ao contrário do que ocasionalmente se pensa, não há proposta concreta de marco regulatório em circulação. Tudo o que existe são tentativas de reivindicar o que já estava previsto no capítulo 5º da Constituição de 1988. Algo que, um quarto de século depois da promulgação da Constituição, ainda não se permitiu que fosse regulado. Quando então se fala em marco regulatório, esse é o grande ponto: regulamentar, por lei complementar aprovada pelo Congresso Nacional, os artigos que já estão no capítulo 5º da Constituição.
Vou dar um exemplo: o parágrafo 5º, do artigo 220, diz que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Isso significa que não poderia haver no Brasil propriedade cruzada dos meios, o primeiro passo para a concentração. Ou seja, no mesmo mercado, o mesmo grupo empresarial não pode ser concessionário de rádio AM, rádio FM, TV aberta, TV paga, jornal, portal de internet. Isso é regulado no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, país-referência para essa discussão, já há a previsão da impossibilidade de um mesmo grupo ser proprietário de um jornal e ter, ao mesmo tempo, uma concessão de rádio desde 1934, quando o rádio estava começando. No Brasil, ao contrário, estamos em um estágio ainda tão distante que nem o que está na Constituição de 1988 é cumprido. E o pior é a interdição feita a qualquer tentativa de debate sobre o assunto. Ao final do governo, foi constituída por meio de um terceiro decreto – depois de outros dois que não funcionaram – comissão que supostamente teria preparado um projeto de marco regulatório para regulamentar o que está no capítulo 5º. Mas que nunca ninguém viu.
E o Conselho de Comunicação?
V.A.L.– O Conselho de Comunicação Social sofreu resistência enorme durante o processo constituinte. O que acabou implementado não é nem de longe o que havia sido proposto por emenda popular. Ele foi regulamentado em 1991 e instalado em 2002, mas funcionou por menos de quatro anos. Ficou sem funcionar de 2006 até julho do ano passado, quando então foi reinstalado em formato em que seus membros representam muito mais os empresários que qualquer outra parcela da sociedade. Uma das características mais marcantes da Constituição de 1988 é a opção que nela se faz por uma democracia participativa. No título oito, chamado Da Ordem Social – que contém o capítulo 5º –, prevê-se o conselho como órgão auxiliar do Poder Legislativo. Ele não delibera nada. Seria, antes, o primeiro espaço para o debate dessas questões, com foco na formulação e no acompanhamento das políticas públicas na área.
Há, também, a questão dos conselhos estaduais, propostos de forma espelhada ao artigo 224. Depois de 1988, as constituições estaduais tiveram de se adaptar ao novo texto constitucional no prazo de um ano. Nesse sentido, nove estados, mais o Distrito Federal, incluíram em suas constituições a criação de conselhos à semelhança do nacional. Seriam instâncias com 13 representantes: quatro dos empresários, quatro das categorias profissionais ligadas à comunicação e cinco da sociedade civil. Houve esforços ao longo desses anos para se criar tais conselhos – inclusive naqueles estados em que essa previsão não havia sido incluída nas respectivas constituições. Apesar disso, só há um conselho estadual em funcionamento no Brasil, o da Bahia. Foi instalado em janeiro do ano passado por meio de lei proposta pelo executivo, que regulamenta um artigo da Constituição baiana, que é de 89.
Como a questão das liberdades individuais é vista na perspectiva republicana?
V.A.L.– As liberdades individuais nos levam ao risco de atender a um interesse privado e não ao interesse da sociedade. De não fazer a ponte entre a liberdade individual e a pública. Há uma tensão entre o privado e o público, e a liberdade republicana é uma tentativa de resolver essa tensão ao supor a liberdade como construção coletiva. Na República, o sujeito é livre na medida em que constrói, junto com os demais, o que é melhor para todos, e não apenas o que é melhor para si. Mesmo entre alguns liberais – no caso dos EUA, por exemplo, em especial com os liberais cívicos – há uma discussão muito grande sobre o discurso do ódio, o discurso da discriminação racial. Até que ponto pode-se permitir coisas desse tipo em nome da liberdade de expressão?
Há um livro liberal de que eu gosto muito, de um jurista chamado Owen M. Fiss, A ironia da liberdade de expressão, em que ele mostra que, em vários casos, o princípio liberal da liberdade de expressão, que é uma ideia de “mais liberdade é a solução”, não se aplica. Ele aborda um conceito importante que diz respeito ao efeito silenciador do discurso. Um bom exemplo é o caso da discriminação contra a mulher. Discursos sexistas, por exemplo, colocam as mulheres em posição de tamanha inferioridade que provocam seu silêncio, desqualificando sua expressão. Nesse caso, uma intervenção do Estado contra o discurso sexista, ao contrário de limitar a liberdade dos que disseminam o preconceito, garante a expressão daqueles que não conseguiriam se manifestar de outra forma.
******
Ewerton Martins Ribeiro, do portal da UFMG