Fico estarrecida ao ouvir/ler colegas jornalistas e até autoridades do Judiciário demonstrando, quando se referem aos direitos humanos (DH) e a seus defensores, profunda ignorância sobre a legislação. Um massacre. ‘Defensor de DH é defensor de bandidos.’ Um boicote mal-intencionado. O defensor de DH defende a aplicação da legislação nacional e internacional, assinada e ratificada pelo governo brasileiro em matéria de direitos humanos para todos os seres humanos. Inclusive bandidos. Passa em branco o trabalho em áreas como violência contra a mulher, questão indígena, racismo, liberdade de expressão.
Trabalho com duas ONGs de DH que não são assistencialistas (Comitê para a Proteção dos Jornalistas e Anistia Internacional). Nenhuma das duas comparece a enterros ou entrega cestas básicas a famílias de vítimas. Sua função é denunciar e cobrar das autoridades competentes o cumprimento da lei – inclusive o amparo às vítimas (não falo em nome de todas as ONGs, claro; tem de tudo). Será tão complicado explicar ao leitor que nem toda ONG recolhe alimentos no Natal? (Ah, saudade da lucidez do saudoso Betinho.)
‘Direitos humanos é coisa pra europeu’ ou ‘esses britânicos não sabem do que estão falando’. Frases vindas de gente com alta penetração popular, de autor que lida com massa. As pessoas devem ser informadas de que os direitos são universais, e não somente para quem teve o privilégio de nascer e viver em país rico. Devem ser aplicados em todo o mundo. Claro que em países como o Brasil, com tantas dificuldades, há mais a ser feito do que na Suíça. Mas dizer que eu não tenho direito a ter meus direitos humanos respeitados porque sou brasileira? Ah, me economize!
Cidadania é bom
Algumas sugestões à mídia, especialmente antes das eleições:
1)
Manter o assunto dos direitos humanos como pauta constante, também fora dos momentos de alta tensão e emoção, para que o debate seja mais racional e menos passional;2)
Esclarecer, em linguagem simples, esta confusão: defensor de direitos humanos é defensor da aplicação da lei, não defensor de bandidos. Conscientização e educação, pela informação correta.3)
Conscientizar e informar o próprio profissional de mídia, para que saiba do que está falando, vença seus próprios preconceitos, ouça as ONGs sérias e dê o mesmo espaço e destaque tanto quando se solidarizam com a polícia, como ocorreu recentemente na onda de terror do PCC (a Anistia Internacional lançou veemente comunicado em 15/5, pouco divulgado), como quando denunciam as más condições penitenciárias.4)
Explicando que a aplicação da lei é para todos. Os que desrespeitam a lei e são flagrados e os que não são. Cidadania é tão bom! Não jogar lixo na rua, não parar em fila dupla, nem pagar café para se livrar da multa, ou fazer gato para pegar TV a cabo do vizinho…‘Cidadãos de bem’
Li num site especializado em comunicação um texto que defendia o engajamento da mídia na defesa dos direitos humanos. O mais simpático comentário dos colegas foi: a imprensa não tem que se engajar em nada. Ah, não? Nem defender o cumprimento da lei, o estado de direito, nada? Bateu até saudade das receitas de bolo em lugar de matéria censurada… Um discordava usando o humor. Provavelmente já sabia que não adianta falar apaixonadamente sobre o tema. Não se combate fogo com gasolina…. Uma amiga muito querida está sendo discriminada em curso de pós-graduação em Sociologia porque mencionou que trabalha com direitos humanos e auxilia a Pastoral Carcerária. De 56 alunos, apenas um a cumprimenta. É mole? Ela se tornou invisível! Pós em Sociologia e Cultura falando em diversidade e tolerância! Fico pasma…
Vivi nas últimas semanas esse outro lado da moeda. Ao contrário do que muitos pensam (fantasiam?), quem defende direitos humanos não vive em redomas de vidro. Eu, por exemplo, moro em conjunto habitacional. Não sou utopista a ponto de esperar que bandidos respeitem direitos humanos: são criminosos. Desrespeitar a lei é a deles. Já os demais cidadãos que se arvoram o direito de requisitar e cobrar…
Compreendo a necessidade que as pessoas têm de desabafar, culpar alguém, achar bode expiatório. Mas fico decepcionada e, honestamente, um tanto assustada com essa banalização da violência, da ameaça, da inversão de valores quando recebo de ‘cidadãos de bem’ e-mails que, entre propostas e sugestões mais ‘leves e publicáveis’, desejam que minha ‘família seja destruída pelos criminosos para aprender o que é bom.’ E isso no dia 24/5, 10 dias após a fase brava. As paixões já deveriam ter dado lugar à reflexão. Senti-me personagem do massacre da serra elétrica 13. Será que mudei de planeta e não reparei? Se formos, militantes pró-DH, realmente ETs seremos aceitos e bem retratados? Quem sabe George Lucas e Steven Spielberg ajudam…
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Jornalista, Santos (SP)