A proposta de descriminalização da radiodifusão sem licença enviada pelo governo ao Congresso [ver ‘Projeto descriminaliza radiodifusão sem licença‘] provocou a grita de muitos daqueles que cotidianamente arvoram-se defensores da liberdade de expressão. A reação – pouco surpreendente – evidencia o que já era óbvio: esses setores não defendem a ampla liberdade de expressão, mas sim a manutenção de um privilégio concedido a eles por meio de um perverso arranjo político e institucional, que mantém a maior parte da população alijada de qualquer possibilidade de exercício dessa liberdade.
Esse arranjo é conseqüência da maneira como se administra o espectro radioelétrico. A idéia de que é necessário regular o acesso às freqüências está baseada em premissas razoáveis: o espectro é um bem escasso, não há lugar para todos, portanto licenças são necessárias. Do contrário, as transmissões podem sofrer interferências incontroláveis e impera a lei da selva. Como se trata de um bem público, cabe ao Estado alocar as freqüências por meio de concessões. Parece haver lógica nesse raciocínio, mas se, por questões técnicas, o governo é quem diz quem transmite e quem não transmite, as regras de administração desse gargalo tornaram-se um aspecto chave para determinar quem tem voz no espaço público.
O problema é que essas regras de administração não são baseadas apenas em critérios técnicos, mas também em critérios políticos e econômicos – até porque não há critérios técnicos que por si só sejam suficientes para determinar quem deve ocupar tal espaço. Como não há espaço para todos e cabe ao governo dizer quem pode falar, a decisão de quem usa o espectro (e em que condições) é necessariamente uma interferência dos governos na liberdade de expressão. Controlar o espectro é controlar a possibilidade de se expressar. Ou, como aponta o acadêmico norte-americano Eli Noam, ‘um esquema de licenciamento, independentemente da forma como é concebido, é uma séria restrição à expressão’.
A restrição à liberdade na prática
Se qualquer licenciamento já significa restrição à expressão, o sistema brasileiro torna as coisas bem piores para alguns setores – em especial as rádios comunitárias. Em qualquer localidade do país, por exemplo, há espaço para cerca de 40 rádios comerciais, mas apenas uma freqüência reservada às rádios comunitárias. Enquanto estas têm o limite de 25W de potência, uma rádio como a Transamérica FM transmite em São Paulo com 400kW – 16 mil vezes mais.
O problema já começa na tentativa de se regularizar. Rádios comunitárias chegam a esperar mais de 10 anos por uma licença. Pior: no processo de análise, o Ministério das Comunicações sabidamente não segue a ordem de recebimento dos pedidos. Já foi denunciada mais de uma vez a existência de um sistema informatizado que recebe os pleitos de parlamentares e políticos influentes e que gera alteração na ordem de edição dos avisos de habilitação (como são chamados os editais de convocação para determinada localidade).
Desde que a prática da radiodifusão comunitária foi legalizada, em 1998, já houve cerca de 20 mil pedidos de autorização de rádios comunitárias. Até o início deste ano, 3.652 autorizações haviam sido concedidas. Dados de 2007 do Ministério das Comunicações apontavam 7.559 processos arquivados e 3.536 indeferidos. O restante ainda tramita.
O processo de renovação das rádios comerciais, por sua vez, também é demorado – estudo da Câmara dos Deputados mostra que em média ele leva 7,5 anos. Mas enquanto os processos não são analisados, garante-se uma licença precária com a qual a rádio funciona normalmente. Às vezes, a demora na análise do processo ultrapassa os 10 anos que valeriam a outorga. Neste caso, a rádio é obrigada a entrar com um novo pedido, e o Ministério das Comunicações simplesmente arquiva o pedido antigo. Assim, o sistema brasileiro consegue a proeza de permitir, legalmente, que uma rádio comercial passe todo o tempo de outorga sem que seu processo de renovação seja analisado.
Desobediência civil
Mas é na fiscalização que o arranjo institucional é mais restritivo à liberdade de expressão. Rádios comerciais operam freqüentemente de forma irregular sem que sejam incomodadas pela fiscalização, com o agravante de que, muitas vezes, brechas na legislação não permitem que essas irregularidades sejam classificadas como ilegais.
Em São Paulo, por exemplo, 36 das 39 rádios que operam em FM têm outorgas vencidas; 22 das 39 têm permissões para outros municípios, mas operam com sua antena na Avenida Paulista. O grupo Bandeirantes, ávido combatente das rádios não legalizadas, controla reconhecidamente seis rádios na capital paulista, sendo que a legislação estabelece o limite de uma freqüência por localidade. Tudo isso acontece por leniência do poder público, que permite que rádios sejam arrendadas, outorgas estejam em nome de parentes dos verdadeiros titulares e permissões para um município sejam utilizadas em outro. Tudo dentro da lei, é claro.
Enquanto isso, para aqueles que não conseguem ultrapassar as barreiras impostas à legalização, a fiscalização é rigorosa. Nos últimos cinco anos, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) fechou 6.716 rádios. Comparado com as 3.652 autorizações dadas em 10 anos para rádios comunitárias e o baixo número de novas licenças comerciais, o número sugere que se está criando um déficit nas rádios em operação; em pouco tempo o país vai estar ‘devendo’ rádios.
Como se não bastasse, esses fechamentos se dão em geral de forma bastante violenta. Entre os diversos relatos estão o da Polícia Federal ameaçando cegos que mantinham uma rádio em Minas Gerais e de uma senhora no Piauí que morreu de infarto por conta da truculência policial. É comum o envolvimento da polícia civil e militar nas operações. A última novidade foi a participação do BOPE no fechamento de rádios no Rio de Janeiro.
Operações truculentas, porém, são apenas a primeira parte do processo. Segundo dados apurados por Dagmar Camargo, da ConRad-RS, junto à Polícia Federal, entre 1998 e 2005, foram 9.864 ativistas enquadrados em inquéritos criminais com base no artigo 183, da Lei 9.472/97, que estabelece 2 a 4 anos de prisão como pena para prática ‘clandestina’ de telecomunicações sem licença. Um número um pouco menor foi enquadrado no artigo 70 da Lei 4.117/62, que estabelece 1 a 2 anos de prisão como pena para a ‘instalação ou utilização de telecomunicações, sem observância do disposto nesta Lei e nos regulamentos’.
O crime que esses cidadãos cometeram foi praticar a desobediência civil a esse sistema restritivo à liberdade de expressão. Ao se analisar esse conjunto de dados, fica claro que o alto número de rádios transmitindo sem licença no país não é fruto do ‘instinto criminoso’ dos praticantes de radiodifusão, mas da desadequação (aqui quase um eufemismo) do sistema às reais necessidades da sociedade.
Por que a criminalização não faz sentido
Equipamentos são recolhidos, rádios que não ameaçam a nada nem ninguém são fechadas, cidadãos são condenados. A troco do quê? Quem ou o que eles ameaçam? Pelos princípios do direito penal, considera-se crime o ato ilícito que gere lesão a bem jurídico protegido, com imputação objetiva. Na maioria das vezes, não só não há lesão a bem jurídico protegido (o que justificaria a tipificação criminal), como não há sequer danos causados (o que justificaria o ilícito civil).
Às rádios não autorizadas não interessa entrar em freqüências ocupadas por rádios comerciais, já que isso faria com que elas mesmas não fossem escutadas. Alguns dirão que elas colocam em risco a aviação. Radiodifusão não autorizada de fato pode causar interferência em sistemas de comunicação, assim como a radiodifusão autorizada – há registros, por exemplo, da Rádio Globo interferindo em aeroporto do Rio de Janeiro. Mas não há um registro sequer de acidentes aéreos que tenham sido causados por conta de interferência deste tipo.
A precaução é importante, mas não pode ser usada como argumento para justificar todas as restrições impostas. Há hoje uma enorme desproporção entre a energia posta no fechamento de rádios e os reais (ou inexistentes) riscos que essas rádios estão causando. O último exemplo evidente disso foi o fechamento da Rádio Muda, na Universidade de Campinas, que operava em baixa potência e cumpria ao mesmo tempo um papel de rádio livre e de radio comunitária, combinando experimentação e prestação de serviço.
A descriminalização, portanto, vem desfazer duas distorções. Em primeiro lugar, o fato de que na maioria das vezes não existe efetivamente lesão a bem jurídico protegido na prática da radiodifusão não autorizada – nos casos em que há, a proposta do Executivo mantém a criminalização. Em segundo lugar, o fato de que a criminalização representa a penalização de quem busca exercer o direito à liberdade de expressão, hoje garantido para muito poucos. No momento em que se mantém a criminalização da prática de radiodifusão sem autorização, privilegia-se o investimento da força do Estado na repressão à liberdade de expressão em vez de colocá-la em prol desse direito humano.
Pouca vontade política
É certo que, independentemente da questão da descriminalização, há uma série de medidas que poderiam ser tomadas para avançar na garantia da ampla liberdade de expressão. Algumas delas passam pela necessidade de regulamentar o sistema público de radiodifusão, a fim de se assegurar a complementaridade dos sistemas estatal, privado e público prevista na Constituição Federal, por meio de reserva de mais espectro especialmente para mídias comunitárias.
Nos Estados Unidos, por exemplo, além de se garantir 25% do espectro para o sistema público (naquele país associado ao sistema estatal), fez-se no último ano a opção de garantir às rádios comunitárias o direito de pleitear qualquer espaço livre no espectro. A lógica, bem diferente da que impera aqui, é que não faz sentido haver demanda reprimida por transmissão se há condições técnicas para que todos transmitam. No Brasil, mesmo que a parte comercial do espectro esteja subutilizada, o conjunto de emissoras comunitárias não têm direito a mais que uma freqüência por localidade.
Outras ações demandariam mudanças na Lei 9.612/98 (que regulamenta a radiodifusão comunitária), especialmente com vistas a acabar com os limites de potência e alcance hoje impostos, flexibilizar as restrições ao financiamento e também ampliar o número de freqüências disponível por localidade.
Um terceiro conjunto de medidas não demanda nenhuma alteração legal, mas passa por mudanças internas ao Ministério das Comunicações para viabilizar a agilização na análise das manifestações de interesse (pedido oficial pela autorização) e a publicação dos avisos de habilitação. O fato de o ministério não ter viabilizado essas mudanças até agora demonstra que há pouca vontade política de transformar essa situação.
Por onde ir
O projeto do Executivo tem, sim, problemas, mas eles não são fruto da idéia da descriminalização. Os erros do projeto vêm da tentativa de tornar mais rigorosas as sanções civis previstas na lei de radiodifusão comunitária em um projeto de lei que tem outro objeto. Ao misturar as bolas, o projeto aumenta o rigor com as comunitárias – autorizadas e não autorizadas – sem que preveja o mesmo tipo de tratamento para as comerciais, com ou sem outorga.
Nesse sentido, o projeto reforça a desigualdade no tratamento e acentua a proteção do Estado brasileiro ao sistema comercial. Isso se torna mais grave pelo fato de que, ao tratar da descriminalização, o texto não faz distinção entre as rádios não autorizadas com fins comunitários e aquelas que praticam proselitismo religioso ou político ou mesmo as que funcionam com fins comerciais sem licença. Essas considerações não tiram, contudo, o mérito central do projeto: trazer para a agenda legislativa a pauta da descriminalização da radiodifusão sem autorização. É preciso garantir, no trâmite legislativo, que essas questões problemáticas sejam modificadas.
Essa, no entanto, é apenas uma das questões represadas na agenda de democratização da comunicação no Brasil. A liberdade de expressão é um valor essencial, e ela só será efetivamente garantida se valer para todos os cidadãos da mesma forma, independentemente de poder político ou econômico. É preciso construir regulação e políticas públicas que criem condições equânimes de exercício dessa liberdade. De outra forma, a liberdade de alguns seguirá impedindo o exercício da liberdade por muitos outros. Enquanto esse sistema político e administrativo se mantiver assim, a liberdade das rádios comunitárias é uma liberdade condicional. Elas seguem condenadas a viver na marginalidade, com direito, no máximo, a liberdade vigiada se mantiverem bom comportamento.
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Do Observatório do Direito à Comunicação