Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Entre a liberdade e o delito democrático

No Brasil, uma parcela da sociedade fundamentalista, representada por parte de alguns cristãos, em pleno século 21 promove boicote a uma empresa por ela expressar conteúdo homoafetivo numa das suas campanhas. Trata-se de uma ação publicitária em que a referida companhia resolve incluir parte da expressão da sociedade democrática brasileira em seu comercial do Dia dos Namorados. Essa parcela da sociedade brasileira à qual me refiro são os homossexuais, os quais são incluídos na peça publicitária através de casais que trocam presentes e um abraço fraterno ao fim. Toda comoção provocada por líderes conservadores do país se deve ao simples fato de a empresa ter incluído, além de um casal heterossexual, outros dois pares de mesmo sexo na referida campanha.

A proporção do ataque da onda conservadora no país chega a espantar, já que o vídeo não arrisca em praticamente nada e não vai além de um abraço fraternal entre os casais de namorados do mesmo sexo. Nos Estados Unidos, por exemplo, a marca de refrigerantes mais vendidos do mundo já foi muito além disso. Ela exibiu, no mais caro intervalo da TV mundial, certa peça publicitária que mostra uma família composta por um casal homossexual e sua filha. Mas nem é preciso ir muito longe. Na Argentina, vizinha do Brasil, uma famosa holding de telefonia mostrou, com algum destaque, dois homens se beijando. Em ambos os casos, e em tantos outros exemplos espalhados também pela Europa, não se vê repressões tão pesadas dos movimentos conservados desses países. Ótimo adendo ao meu texto seria: “Estamos numa sociedade democrática, os cristãos têm o direito de não concordar com esse tipo de comercial”. De fato, nada poderia falar contra isso, mas nem de longe o problema é “não concordar” com a tal peça publicitária.

O problema, certamente, também não é a religião, nem os pastores e, de certo modo, nem os cristãos. O problema é a perseguição que se instaurou, no Brasil, contra os homossexuais por parte de certos religiosos e demais fundamentalistas. Óbvio que tanto nos Estados Unidos como na Europa, onde há comerciais como o supracitado, o movimento cristão-conservador também é contrário à homossexualidade. Porém, a diferença é que tratam esse tipo de comercial como mais um que depõe contra seus próprios valores morais, sem o mesmo tipo de comoção. A pergunta que fica é: por que, no Brasil, fundamentalistas só perseguem tão incisivamente comerciais de TV que mostram relações homoafetivas? A resposta – inverídica – desses fundamentalistas e cristãos quase sempre é: “Porque isso contraria nossos princípios morais.” Entretanto, peças publicitárias com mulheres e homens seminus não são perseguidos tão arduamente por aqueles. Os mesmos não fazem campanha de boicote a comercial de TV que dissemina infidelidade entre cônjuges. Ação publicitária que mostra homens consumindo bebidas alcoólicas e catando mulheres seminuas na rua eles simplesmente deixam passar, não se mobilizam dessa maneira. Será que comerciais de TV como esses não vão de encontro aos seus princípios? É lógico que vão, mas nem por isso os cristãos tentam impor, a todo custo, o que pensam e por isso mesmo promover uma tal perseguição pública. Então, por que todo ardor de rechaço é guardado especialmente para campanhas que mostram relações homossexuais?

Os deveres do Estado democrático

Não se pode tolerar, num país que se diz laico, uma campanha de perseguição como essa. O livre direito de expressão tem de ser resguardado. Já imaginou se os homossexuais começassem a fazer campanha para boicotar ações publicitárias que mostram relações heterossexuais?! Ainda mais absurdo é o Estado manter-se omisso nessa questão. O que está a ocorrer é uma clara infração ao direto de livre expressão garantido na Constituição brasileira. Essas pessoas estão passando do seu limite, estão a perseguir, publicamente, parte da expressão social de seu país. Isso é crime, crime contra a liberdade de expressão. Essas pessoas estão – publicamente – cometendo um delito! E a infração não é não concordar com o tal comercial, não concordar é um direito que todos temos, o crime não é clicar em “não gostei” no vídeo da peça publicitária. O crime é perseguir uma expressão da sociedade brasileira, da qual os homossexuais fazem parte, por meio de um boicote público à empresa que resolveu incluir tal expressão social em sua campanha publicitária.

Passamos do período da santa inquisição, não se pode mais seguir valores morais puramente cristãos agindo conforme eles em detrimento dos direitos democráticos. Fazer isso é violar a liberdade de expressão e da diversidade de opiniões que toda sociedade desse tipo supõe. Porém, não estaria eu sendo em demasia condescendente com os homossexuais e esquecendo do fato de que os cristãos-conservadores devem ter sua liberdade democrática resguardada? Tratar como crime tais ações não é ir de encontro a tal liberdade que tais pessoas se fazem valer para espalhar seu boicote público? Para responder pertinentes questionamentos como esses é, anteriormente, necessário entender o que é a liberdade democrática e quando ela devém crime contra a democracia.

John Rawls, um dos mais importantes pensadores acerca da política, observa que, ao longo da história do pensamento democrático, o foco esteve em conseguir, não a liberdade no geral, mas certas liberdades específicas – como as encontradas em manifestos e na Declaração de Direitos Humanos. Essas “liberdades básicas” seriam: liberdade política, liberdades de pensamento, consciência, expressão, associação, reunião, profissão, direito de ir e vir; proteção contra agressão física, opressão psicológica, apreensão e detenção arbitrárias; direito à propriedade. São claramente, pois, direitos da personalidade, inalienável, irrenunciável, intransmissível e irrevogável, essencial para que se concretize o princípio da dignidade humana. É, portanto, como em qualquer sociedade democrática contemporânea, uma forma de proteger seus cidadãos de opressões. Em conformidade com isso, como não poderia deixar de ser, por se tratar de um país democrático, no artigo 5º da Constituição Federal do Brasil, “liberdade de expressão” é o direito de todo e qualquer indivíduo de manifestar seu pensamento. Entenda-se por isso: “opinião, atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, sem censura”. Pois é dever do Estado democrático assegurar “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”.

Os princípios cristãos-fundamentalistas

Portanto, o que está ocorrer é um crime contra a liberdade de expressão, a qual toda sociedade democrática – como a brasileira – supõe aos seus cidadãos. Nesse momento, no Brasil, se presencia crimes públicos contra uma parte de sua “expressão social” (representada pelos homossexuais), por meio de um boicote público à empresa que resolveu mostrar tal parcela da sociedade. É nesse ponto, portanto, que deve ficar clara uma diferença fundamental entre a “liberdade democrática” e o “delito democrático”. A primeira expressão todo cidadão conhece ou faz ideia do que se quer dizer quando é mencionado algo acerca disso, sendo justamente dela que líderes fundamentalistas do país se valem para espalhar seu boicote. A segunda, à primeira vista, parece soar estranha, pois há algum crime intrínseco ao próprio ambiente democrático? Sim, de fato! Com a segunda expressão, desejo mencionar uma ignóbil decorrência do exercício da democracia. A causa do delito democrático tem, pois, sua gênese no próprio valor central desse tipo de sistema político: a liberdade. Ou melhor, o crime democrático decorre, justamente, da subversão do exercício desse pilar central da democracia.

O problema não está, entretanto, na existência da liberdade no ambiente democrático – na verdade ela é fundamental –, mas em seu uso arbitrário. Por exemplo, em muitos dos países ocidentais – como no Brasil – reprimir a existência do negro já é crime, notadamente “racismo”. Ora, e o que seria racismo? Ele não é senão um crime reconhecido por seu elevado poder de repressão a parte de uma sociedade. Todavia, uma pessoa racista não cometerá racismo necessariamente. Em outras palavras, alguém que não concorda com a presença de negros na sociedade, ou na equidade do tratamento desses em relação aos brancos, ou simplesmente não gosta de sua presença, só poderá responder criminalmente caso suas concepções desemboquem em atitudes conformes a elas. As ações de um cidadão, portanto, não podem reverberar em qualquer tipo de repressão com relação ao modo de viver do outro. Não podem, ainda, ferir o princípio democrático por excelência: a isonomia, ou mesmo o pilar da igualdade dos indivíduos, estabelecido na Declaração dos Direitos Humanos. Assim, colocar em prática concepções racistas (como as já mencionadas) é crime por sua capacidade de repressão e de exclusão. Ações de acordo com concepções racistas são crime por seu alto poder de segregação, ferindo o princípio democrático por excelência: a igualdade. Liberdade, ou melhor, autonomia é, pois, como diria Kant, a capacidade de se dar leis, e não a mera possibilidade de agir como se quer, por suas próprias inclinações e convicções pessoais.

Assim, pode-se observar que a liberdade, em diversos momentos, devém crime, como no supracitado exemplo do racismo. Isso não implica em dizer que, de algum modo, a liberdade possa se transformar em delito, o que devém crime, em verdade, é seu uso arbitrário. Quando alguém propõe um boicote público a uma empresa por ela expressar a parcela de uma sociedade, se comete um grave crime: a repressão da exposição dessa parcela. A igualdade de todos numa sociedade democrática impede que um grupo de cidadãos retalie qualquer ação que tenha como fim mostrar a existência de grupos dos quais os primeiros não concordam. Nenhum veículo pode ser reprimido por, simplesmente, mostrar a existência de um grupo de cidadãos, pois todos têm direitos iguais numa tal sociedade, inclusive de serem representados. Concordar ou não com a existência dos homossexuais na sociedade é a critério de cada um. Ninguém pode obrigar nenhum religioso a passar por cima de sua crença e concordar com relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. Numa verdadeira sociedade democrática, por mais que não se concorde com os princípios cristãos-fundamentalistas, ainda assim se deve admiti-los; do contrário, haveria repressão, portanto, crime contra a democracia. Mas esse exemplo é apenas um particular que usa de certo princípio mais geral, o qual também vale para o comportamento e forma de pensar dos homossexuais. Que religiosos e demais fundamentalistas não concordem com eles, jamais pode decorrer que aqueles possam reprimir esses. Ou melhor, nunca pode resultar em retaliação a qualquer tipo de exposição da sua existência. Mas, como se pode observar, é justamente isso que está a ocorrer.

Intolerância à diversidade de pensamento

Assim, essas manifestações públicas que retaliam a empresa por ela haver, tão simplesmente, mostrado homossexuais junto a heterossexuais em sua peça publicitária, i.e., exposto a sua existência, constitui um grave delito. Se trata, pois, de repressão à exposição da existência de casais homossexuais, i.e., de repressão a uma empresa por ela ter exposto certo grupo de cidadãos. Num estado democrático, onde todos devem ter os mesmo direitos, independentemente de sua crença e seu comportamento, um cidadão que arma público boicote, ou o faz individualmente, a uma companhia pelo simples fato de a mesma dar exposição a certo grupo de cidadãos do qual ele não concorda, comente um crime contra a liberdade de expressão. Portanto, um greve delito contra a democracia.

Mas tais fundamentalistas podem argumentar, ainda, que sua intenção não é reprimir homossexuais, mas tão somente deixar de comprar produtos da empresa por não concordarem com sua filosofia. Ora, não concordar com a exposição da diversidade de comportamento, dos diferentes grupos de sua sociedade, feita por um veículo, não é o mesmo que a ação de reprimir esse veículo por tal exposição. Um cidadão ao reprimir, individualmente ou em conjunto, qualquer forma de exposição sobre a diversidade da sociedade da qual faz parte, não está a exercer sua liberdade de expressão, mas a cometer um crime contra tal liberdade. O que ocorre no Brasil, portanto, é o mais claro exemplo de intolerância à diversidade de pensamento e de comportamento, ambos princípios que toda democracia supõe e que, ainda, estão previstos na Constituição do país. É um crime público, onde os infratores agem abertamente. E o que o Estado brasileiro fez para puni-los? Nada!

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Leandro Hollanda é filósofo e pesquisador com bolsa da Reitoria da Universidade de São Paulo