Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entre chuvas e trovoadas

No final de 2003, o jornalista Luiz Carlos Barbom Filho denunciou, num pequeno jornal que editava em Porto Ferreira, no interior de São Paulo, a existência no município de uma rede de corrupção de menores, favorecimento da prostituição e formação de quadrilha ou bando. Enquadrados nesses delitos, três empresários e um funcionário público municipal foram processados e condenados a penas que variam entre 4 e 45 anos de reclusão. Mas só um garçom permaneceu preso.

O jornal Realidade acabou sendo fechado e, três anos e meio depois, no dia 5, Barbom foi morto. Tinha 37 anos. Embora as circunstâncias do atentado ainda não tenham sido elucidadas nem presos os seus autores (dois homens que se aproximaram do jornalista numa motocicleta, um dos quais fez os disparos com um revólver), a relação entre as denúncias e o assassinato se impôs.

Apesar disso, a Federação Nacional dos Jornalistas e o sindicato de São Paulo imediatamente juntaram ao protesto pelo crime observações que provocaram nova polêmica [ver remissões abaixo]. Na sua nota oficial, a Fenaj disse:

‘Luiz Carlos Barbom Filho, apesar de se auto-intitular jornalista, não o era de fato e de direito. O jornal Realidade, de sua propriedade, foi fechado, pois nunca esteve regularizado e Barbom Filho não possuía o registro de jornalista, tendo sido, inclusive, processado por exercício ilegal da profissão’.

A revista eletrônica Comunique-se repetiu informações semelhantes, desqualificando o jornalista. Mas a organização Repórteres Sem Fronteira mostrou que, independentemente de sua condição formal e legal, Barbom era cronista do semanário Jornal do Porto e do diário JC Regional. Numerosas acusações que fez em suas matérias contra políticos locais tornaram-no muito conhecido na região e atraíram contra ele muitos inimigos. Ameaças de morte estavam sendo feitas contra ele, quando foi morto.

Controle e manipulação

O episódio tem uma mensagem clara e direta: todos os jornalistas têm que repudiar – de pronto e por inteiro – as reações a matérias jornalísticas que extrapolem o plano das idéias, das informações e dos fatos. Tudo mais, mesmo quando relevante, deve ser considerado a partir dessa premissa. As pessoas têm que reagir exercendo o direito de resposta ou recorrendo à via judicial, quando se sentirem prejudicadas ou ofendidas por um texto que sai em publicação periódica.

Não importa, de imediato, quem escreveu o texto e onde ele foi publicado. Se o prejudicado ou ofendido recorrer à violência ou a qualquer outra via marginal à da regra legal, ou contrária à norma civilizada, deve receber o repúdio e a condenação dos jornalistas, pela categoria em si e em nome da sociedade. Uma vez que a reação seja praticada legal e civilizadamente, discutamos honesta e sinceramente todas as suas circunstâncias, sem corporativismo ou paixão.

Em qualquer outra circunstância, à parte a imposição de fazer uma cobertura rigorosa dos fatos, denunciando o próprio jornalista, se comprovada sua má-fé e tendenciosidade, é necessário combater a violação às garantias constitucionais da livre expressão do pensamento e da liberdade de informação. Sem essas garantias, estaremos plantando, hoje, as sementes da nossa destruição, amanhã. E da democracia, cuja existência é a maior razão de ser da imprensa.

Diante do assassinato de um colega, que tratava de perigosos temas do maior interesse coletivo, a dimensão estritamente corporativa da Fenaj e do sindicato de São Paulo, como de vários outros, sufocou sua percepção mais ampla da questão. Todos parecem esquecer que a estrutura jurídica é uma moldura sufocante para o exercício do jornalismo no Brasil. Ainda está em vigor (ou serve de maléfica inspiração) a tríade de instrumentos de controle e manipulação, representada pela lei 5.250, de fevereiro de 1967 (a impopular – mas muito viva – Lei de Imprensa); pelo AI-5, de dezembro de 1968 (só formalmente revogado, mas cuja inspiração continua a ser um fantasma ativo, a assombrar a liberdade); e pelo decreto-lei 972, de outubro de 1969, que regulamentou a profissão num dos períodos mais negros da censura (da Junta Militar).

Míopes, equivocadas, melancólicas

Esses instrumentos é que são responsáveis por Barbom não poder ser considerado um jornalista profissional e sua empresa jornalística não ser legal. Estivesse em vigor a estrutura anterior à Lei de Imprensa, ele seria um jornalista (e ponto final) e sua empresa, mesmo que microscópica, estaria usufruindo as franquias legais.

Quem se deixa fascinar pelas outorgas de vantagens corporativas (cuja origem mais remota está no fascismo) dessa legislação esquece o seu contexto histórico. As regras que continuam a se impor ao exercício do jornalismo são as de um regime de exceção. Uma delas, pouco citada, exige que as empresas jornalísticas registrem o nome da gráfica que utilizam. Por quê? Ora, para que as gráficas estejam ao alcance da pressão do poder caso estejam imprimindo publicações indesejáveis. Tanto mais passíveis de represálias e violências quanto mais estejam distantes dos holofotes dominantes, isto é, do Sul Maravilha, da ‘civilização’.

Sertão é isso, alertou Guimarães Rosa. Deus, se quiser ir lá, que se arme – completou. Quem, do sertão, tem uma visão virtual, telescópica, não entende. Sequer vê. Daí, provavelmente, essas sentenças corporativas: míopes, equivocadas, melancólicas. E nocivas. Dadas exatamente quando, em plena democracia, nota-se um impulso cada vez mais forte de autocensura e de predominância dos interesses comerciais sobre os jornalísticos. É um sinal ruim no horizonte.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)