Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Entrevista: José Leite Pereira Filho

Conhecido pelos mais próximos como comandante (afinal, ele é, mesmo, um Comandante de Mar-e-Guerra), a trajetória  do conselheiro José Leite Pereira Filho confunde-se com a da própria Anatel, agência que dirigiu desde o seu primeiro dia. Trazido da União Internacional de Telecomunicações pelo ex-ministro Sérgio Motta, Leite acabou dedicando dez anos de sua trajetória ao setor, deixando o cargo de conselheiro da agência no dia 4 de novembro.

Nesta entrevista, o leitor poderá compreender um pouco o seu perfil: discreto quando trata de elencar as realizações, e realista na avaliação dos erros do regulador. E poderá entender também, ao se deparar com as suas instigantes intervenções, porque José Leite Pereira Filho é um dos mais importantes artífices na construção do modelo,  expansão e democratização das telecomunicações brasileiras.

Leite quebra alguns tabus, como o de que as operadoras de TV a cabo são controladas por capital nacional. Defende sem pudor a convergência tecnológica, por entender ser ela benéfica para o país. Ao mesmo tempo, acha que as incumbents devem ser controladas pelo poder que exercem nos mercados relevantes. Não se furta da auto-crítica, ao reconhecer que a fiscalização da Anatel não tem condições de garantir, corretamente, os direitos dos usuários, ou ainda que a agência é ineficiente para arbitrar as brigas entre as empresas. E continua a pensar o futuro, como medo do despreparo da agência para enfrentar as grandes empresas na definição do modelo de custos.

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O sr. dirigiu a Anatel por dez anos, em dois governos diferentes. Como avalia a relação das agências reguladoras com o Poder Executivo brasileiro?

José Leite Pereira Filho – A passagem de dois governos consolidou as agências reguladoras. O primeiro governo criou esse sistema, mas o teste do segundo governo foi essencial e acho que a agência passou no teste. O atual governo tem demonstrado, em mais de uma oportunidade, que, realmente, assimilou esse modelo. Essa é a conclusão desses dez anos: a agência veio para ficar.

E no relacionamento entre os poderes?

J.L.P.F. – No relacionamento com os governos, realmente há uma dificuldade. E a dificuldade existe porque, quando se diz que a política é estabelecida pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo e a implementação da política pela agência reguladora, essa definição é muito vaga. Existe uma fronteira muito fluida entre o que é regulação e o que é política pública. Acredito que o aprimoramento seria estabelecer, com mais precisão, como a política deveria se expressar. E, talvez, a saída fosse que a política tivesse que se manifestar sempre através de um instrumento jurídico, seja decreto presidencial, seja uma lei. Também  entendo que as leis e os decretos devam se restringir à política em si e não à regulamentação.

Algum exemplo dessa legislação regulamentadora?

J.L.P.F. – A Lei de TV a Cabo, para mim, é um exemplo desse problema, pois, ao longo dos anos ela só prejudicou o segmento de TV por assinatura.

De que maneira?

J.L.P.F. – Essa lei ficou desatualizada rapidamente, estabeleceu restrições de capital que não são precisas, trazendo interpretações diversas. Do jeito que está escrita a lei, o capital brasileiro nas concessionárias de TV a cabo pode ser quase zero, ao invés de 51% como se apregoa.

O sr. quer dizer o capital total, não é? Mas o controle (ou 51% das ações) têm que estar em mãos de brasileiros, não?

J.L.P.F. – Não é isso que diz a lei e não é assim que muitas concessionárias de TV a cabo estão constituídas. A Lei de TV a Cabo diz que 51% das ações de uma concessionária de TV a cabo têm que estar em mãos de pessoas físicas brasileiras. Mas essa mesma lei diz, também, que essa mesma concessionária pode ser controlada por outra pessoa jurídica que também tenha 51% nas mãos de brasileiros, e mais outra e mais outra. Dependendo da cadeia de controle, o controle de brasileiros sobre a operadora de TV a cabo se reduz a quase zero.

E há esses exemplores no mercado brasileiro. Há concessionárias de TV a cabo no Brasil que têm nove empresas controladoras sobre a sua estrutura. Nesse caso específico, se fizermos uma conta simples, para sabermos quanto de capital nacional efetivamente existe na operadora, basta que elevemos os 51% à oitava potência, o que significa que, na concessionária, a representação do capital nacional é menor do que 0,05% (meio por cento). Então, o capital nacional da Lei do Cabo é uma balela.

Uma balela, mas que atrapalhou muito o setor, porque, ao definir o capital em 51%, isso espantou os investidores estrangeiros. No boom das telecomunicações, a Anatel vendeu várias outorgas de TV a cabo que não foram em frente, porque faltou investimento. Os investidores estrangeiros ficaram assustados quando alguém dizia que a concessionária  ‘só pode ser de brasileiro’. Mas, na realidade, não é isso o que acontece, já que, no final, uma concessionária terá meio por cento de capital brasileiro e 99,5 de capital estrangeiro.

Esse é o caso da Telmex na Net, por exemplo?

J.L.P.F. – É. Mas há outros exemplos. E quando me refiro a essa cadeia, estou falando apenas das ações nominativas, já que as preferenciais, que são 2/3 das nominativas, não têm restrição alguma.

O sr. não acha que essa cadeia de controle que diminui a participação do capital estrangeiro desvirtua o princípio da Lei do Cabo?

J.L.P.F. – Não, porque, justamente, a Lei do Cabo não fala que a concessionária, a operadora de cabo, é que deve ser controlada por brasileiro.  A lei diz que a concessionária deve ter sede no Brasil e pelo menos 51% da propriedade das ações (e não o controle) nas mãos de pessoa física ou de pessoa jurídica brasileira. E quando fala em pessoa jurídica, aí sim fala que essa pessoa jurídica é que deve ser controlada por brasileiro. Ou seja, a concessionária deve ter 51% de capital ou pessoa física brasileira ou pessoa jurídica brasileira. Só.    

Mas a 101 não ‘amarra’ essa cadeia de controle?

J.L.P.F. – A 101 só pode ser aplicada nos limites da Lei. E a Lei do Cabo fala que o controle de 51% deve estar na pessoa jurídica que controla a concessionária. A 101 única e exclusivamente define o que é controle. E a primeira pergunta que ela busca responder é: quem é que deve ser controlado? E, no caso da Lei do Cabo, é a holding, e não a concessionária. Então, a 101 vai obrigar que a pessoa física que está na última empresa da cadeia de controle seja controladora da holding, mas pára aí. Ela não pode chegar à concessionária.

Mas, se se controla o controlador, não está-se controlando a operadora?

J.L.P.F. – Depende do controlador. Ele pode estabelecer no acordo de acionistas que quer ter representantes dele no conselho de administração da concessionária. Ou, simplesmente, pode querer agir como investidor e não ter qualquer representação.

Quais foram os principais erros e acertos desses dez anos?

J.L.P.F. – Vamos primeiro aos orgulhos. É indubitável que um deles é a expansão da telefonia móvel no Brasil. O serviço móvel, não resta dúvida, foi sucesso no mundo todo, mas no Brasil, em particular, ele recebeu uma ajuda muito grande do regulador, quando tomou a decisão da destinação da freqüência de 1.8 GHz para a segunda geração e a de 1.9 GHz para a terceira geração, trazendo para cá  sistema de grande escala mundial, além de garantir uma disponibilidade de espectro muito grande. Essa foi uma contribuição muito importante do regulador para o desenvolvimento da telefonia móvel, além da criação do serviço pré-pago.

O sr. acha que, se a Anatel tivesse tomado outra decisão naquela época, não haveria a expansão do celular tal como ocorre hoje?

J.L.P.F. – O crescimento do celular ocorreria de qualquer maneira, porque é assim no mundo todo. Mas o que se nota é que houve uma expansão maior nos países mais pobres, quando se adotou a tecnologia GSM, de escala mundial. Nos Estados Unidos, onde a tecnologia era outra, houve também a expansão, mas lá a renda per capita é muito diferente e, mesmo com a tecnologia mais cara, eles vivem com isso, sem problemas. Nos países mais pobres, que precisavam de tecnologia mais barata, o GSM, sem dúvida, ajudou muito.

Outros acertos?

J.L.P.F. – Outra contribuição, embora muita gente critique a decisão, foi a implementação do Código de Seleção de Prestadora (CSP). Acho até que está na hora de rever a decisão, mas, à época, foi uma contribuição grande para a competição. A escolha, chamada a chamada, de prestadora de longa distância, fez com que o Brasil saísse de um sistema em que só tinha uma empresa oferecendo o serviço – que era a Embratel – e dividisse esse mercado com as outras empresas. Se não fosse isso, dificilmente teríamos a competição tão rápida como aconteceu nas ligações de longa distância. O incômodo de ficar digitando mais números foi o preço que a sociedade teve que pagar para que a competição vingasse.

A pergunta, agora, é se continua a valer a pena essa medida. Acho que, após dez anos, vale a pena reavaliar. Ela já cumpriu seu papel. Acredito que o sistema de pré-seleção já poderia ser tentado, principalmente na longa distância originada no serviço móvel.

Outro registro positivo?

J.L.P.F. – Os direitos dos usuários. Esses direitos foram bem ampliados ao longo do tempo, tanto nos regulamentos do serviço móvel pessoal, no do serviço telefônico fixo comutado, e no de TV por assinatura. Foi um progresso muito grande.

Por que a Anatel demorou tanto para estabelecer os direitos dos usuários de TV por assinatura?

J.L.P.F. – Acho que foi uma questão de prioridade, já que a TV por assinatura tinha poucos usuários. A tendência normal é a de se inserir os direitos dos usuários em serviços que tenham quantidade grande de clientes pessoas físicas. O Serviço de Comunicação Multimídia (SCM), por exemplo, é corporativo, por isso acho que deve-se esperar um pouco para criar direitos de usuários, pois, com eles, vêm muitas obrigações. Acho, contudo, que no acesso à internet banda larga, já se deveria começar a pensar em fazer um regulamento estabelecendo esses direitos.

E a competição? Como o sr. avalia?

J.L.P.F. – A competição também está na lista de sucessos. Sem dúvida nenhuma, ela ocorre na telefonia móvel, uma competição muito grande.

E por que ainda uma tarifa de celular tão acima dos padrões internacionais? Pelo estudo da Merril Lynch, o minuto móvel do Brasil é um dos mais caros do mundo.

J.L.P.F. – Esse preço vai cair. O preço só começa a cair quando o mercado se estabiliza. Enquanto há uma demanda muito grande – e no Brasil ela ainda existe, pois a densidade está na ordem de  50%  –, não há muita disputa de preço. Quando o mercado se estabiliza, as empresas passam a competir mais agressivamente na qualidade e no preço.

E os fracassos?

J.L.P.F. – O maior fracasso foi a não utilização dos recursos do Fust (Fundo de Universalização das Telecomunicações). A  falta de sua utilização distorceu muito o modelo. O modelo previa que, nos locais  onde não houvesse interesse de as empresas investirem, e nas camadas sociais que não tivessem poder aquisitivo adequado, o Fust seria usado. Como ele não foi gasto, pressionou os outros atores a resolverem o problema. Esse foi o maior problema dos dez anos, pois se restringiu muito o acesso banda larga no Brasil. É um problema e uma frustação, porque nunca houve vontade política para resolvê-lo.

Outros erros?

J.L.P.F. – Tenho também algumas outras pequenas frustrações. Entre elas, a do relacionamento com os usuários. Falta à Anatel se posicionar  na questão da proteção dos direitos dos usuários.

São duas as questões: uma é o usuário ter o direito, e quem dá esse direito é a regulamentação. Outra, é a fiscalização para certificar se esse direito está sendo obedecido pelas empresas. E é nesse ponto que acho que está a fragilidade da Anatel. De início, a agência assumiu que faria essa fiscalização para assegurar a proteção dos direitos dos usuários. E ela, objetivamente, não tem capacidade para isso. Por outro lado, existe um sistema enraizado na sociedade – os Procons, e Ministério Público. Acho que Anatel deve deixar que, principalmente, os Procons façam essa fiscalização.  

Notei, ao longo desses anos, que a Anatel não consegue fazer isso bem, e, se fosse fazê-lo bem, deixaria de cumprir com suas outras atribuições principais. Que são regular e ser um agente de equilíbrio entre os investidores, o Poder Público e o próprio consumidor.

A agência, ao desempenhar o papel de ser o ponto de equilíbrio entre esses agentes, e a sociedade, no que diz respeito ao consumidor, não tem conseguido desempenhar bem esse papel. Se não existesse uma organização como o Procon, a Anatel teria que se aparelhar para isso. Mas, como existe, acho que merece uma reestruturação nesse sentido.

Quanto à regulação, algum problema?

J.L.P.F. – Do ponto de vista da organização da regulação, acho que a Anatel precisa resolver a questão das outorgas.

Caminhar para a licença única?

J.L.P.F. – Entendo que não dá para caminhar para a licença única, mas a Anatel deveria  reduzir o número de licenças e criar outorgas de classes de serviços, para poder ficar com o mínimo de outorgas possíveis e evitar que a outorga seja um empecilho à convergência tecnológica. Está totalmente antiquada a existência de 34 outorgas de serviços, e muitos deles nem são mais utilizados.

Trabalhar nessa direção significa também dar mobilidade plena a todos os serviços que utilizem radiofreqüência, pois não tem sentido se poder fazer tecnicamente uma coisa e acabar sendo impedido por empecilhos regulatórios.

Outros desejos?

J.L.P.F. – Acho também que a Anatel precisa resolver melhor a questão da arbitragem. A Anatel não tem conseguido fazer a arbitragem entre as grandes empresas, nem entre as pequenas. E para melhorar esse desempenho, a agência poderia incentivar o aparecimento de câmaras de arbitragem fora de sua estrutura. As questões que vão parar em arbitratem dizem respeito apenas a algumas empresas, por que, então,  elas teriam que vir à Anatel? Elas poderiam ir a uma Câmara de Arbitragem e poderiam conseguir uma solução muito mais rápida para as divergências.

O sr. não acha que se deveria estimular outros mecanismos de competição para a banda larga, ou seja, evitar que as incumbents locais também controlem esse mercado?

J.L.P.F. – Os efeitos da convergência são todos positivos, portanto, aumenta também a competição. No caso no Brasil, a convergência não traz maiores riscos do que os que já existem,  pois, como não há qualquer restrição para as incumbents, a não ser no caso da TV a cabo em suas áreas de concessão, não há nenhuma complicação para elas terem outras licenças. Por sinal, todos os grandes grupos no Brasil já têm. Ter vários papéis ou ter um papel só, dá no mesmo.

Se há algum problema de concentração por causa de licença de outorga, ele independe da convergência tecnológica, pois não existe qualquer vedação para as empresas terem as diversas outorgas. A convergência traz, mesmo, a competição, isso sim.

Mas acho que a Anatel deveria continuar a trabalhar no Poder de Mercado Significativo. Ou seja, procurar definir os mercados relevantes. A Europa definiu os 18 mercados que considera mais importantes. O Brasil poderia também pensar na mesma coisa.

Esse papel deveria ser da Anatel ou do Cade?

J.L.P.F. – Da Anatel, porque é ela quem conhece bem as aplicações de telecomunicações e, portanto, pode também definir os mercados relevantes.

E quanto à empresa nacional? Qual a sua opinião?

J.L.P.F. – A empresa nacional já existe e existe uma outra quase nacional.

E a fusão das duas?

J.L.P.F. – Na verdade, tenho receios de que uma empresa puramente nacional acabe significando um tiro no pé. Pode haver uma empresa preponderamente brasileira, mas não se deveria descartar os investidores estrangeiros. Por exemplo, a Telecom Italia, agora, continua com mais de 50% nas mãos do capital italiano, mas autorizou o ingresso de um investidor estrangeiro, no caso a Telefónica.

Já de fora, para o sr. qual será o maior desafio da Anatel para o próximo ano?

J.L.P.F. – O modelo de custos, para que efetivamente ele possa atender às necessidades do consumidor. Se o regulador não estiver muito preparado para o modelo de custos, ele vai perder para as empresas, que estarão muito mais bem preparadas só que elas terão, a partir de então, uma justificativa regulatória para cobrar a tarifa. Não podemos correr o risco de repetir a Holanda. Lá, depois de implantado o modelo de custos, a tarifa aumentou.

Depois da quarentena, o sr. pretende continuar na área?

J.L.P.F. – Não poderia virar dentista de uma hora para outra.

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Da Redação do Tele.Síntese